"Segredo do Licorne" é uma homenagem à obra de Hergé

Apetece-me agradecer a Spielberg: ele vai dar a centenas de milhares de pessoas o desejo de descobrir os álbuns de Hergé

O verdadeiro tema do filme é a criação de um laço forte entre Tintin e Haddock DR
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O verdadeiro tema do filme é a criação de um laço forte entre Tintin e Haddock DR
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Os primeiros contactos entre Hergé e Steven Spielberg remontam a Novembro de 1982, pouco antes da morte do desenhador. Spielberg descobre Tintin, compra os direitos e pede na mesma altura a Hergé para não exercer qualquer controlo sobre o filme, o que ele nunca fez com ninguém. Mas Hergé admite que Spielberg precisa da sua liberdade de criador. Teria dito: “Serei certamente traído, mas com ele sê-lo-ei de forma talentosa.”

O filme "Duel" (1971) tinha maravilhado Hergé, que admirava o seu princípio de economia. Não só tirava o fôlego ao espectador apenas com um automóvel e um camião, como estava próximo do mito. Logo que viu o filme, Hergé reconheceu um irmão em Spielberg. É pena que os dois homens nunca tenham conseguido encontrar-se.

O filme leva cerca de 30 anos a concretizar-se. Spielberg não se situa num registo de oportunismo comercial, pois quis sinceramente prestar homenagem à obra de Hergé. Pessoalmente, quando vi os primeiros filmes anúncio fiquei um pouco aterrorizado pelo lado caricatural de Haddock e o aspecto pueril de Tintin. Mas o filme, no seu conjunto, convenceu-me e deixei-me arrebatar.

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Sobre o filme, Hergé teria dito

Com outra técnica e no contexto de uma super-produção americana, Spielberg conseguiu encontrar algo do espírito de Hergé. Estamos, pois, confrontados com uma tripla desproporção. Em primeiro lugar, entre a pequena Bélgica e o poderio comercial dos Estados Unidos. Depois, entre Hergé, artista solitário que desenvolveu a sua obra a partir dos anos 1930, e o cineasta mais visto de Hollywood, aliado a Peter Jackson.

Finalmente, entre a tecnologia minimalista e barata da banda desenhada e uma super-produção que é o desenlace de anos de investigação sobre a "motion capture", os efeitos especiais e a imagem 3D. Porque é Golias-Spielberg que quer que os americanos e os espectadores de todo o mundo descubram Hergé e Tintin. Ele dá à obra de Hergé a imensa oportunidade de uma nova vida. Uma das forças do filme é a de aliar uma tecnologia ultra-moderna a um universo que evoca os anos 1940-50.

Como Hergé, Spielberg é platónico no tratamento dos objectos e dos veículos: a ideia da mota, a ideia do avião, a ideia do cargueiro, mais do que este ou aquele modelo de ontem ou de hoje. No filme, não há qualquer telemóvel, computador ou hambúrguer. Estamos num universo mais inglês do que americano com um pequeno toque bruxelense na sequência do velho mercado. E a realidade chega-nos filtrada.

O filme tem uma forma de intemporalidade que nos conduz à Aventura com maiúscula. É claro que no tratamento das personagens estamos perante uma outra estética, diferente da dos álbuns. O aspecto hiper-realista da pele não tem nada a ver com as superfícies planas nos rostos de Hergé.

Aceito o Tintin de Spielberg pela suavidade do seu rosto, aceito Haddock porque a barba desempenha um papel de ocultação e “veste” o seu rosto. Mas por vezes a mistura de realismo e caricatura desagrada-me. Com os Dupond(t) e com a Castafiore, incomodam-me os seus narizes, cujo aspecto gráfico me parece que se impõem demasiado. Mas, simultaneamente, é preciso compreender que uma transcrição literal do estilo de Hergé teria raiado o ridículo.

Nos anos 1980, Spielberg optara por argumentos originais. Teve a intuição de se aperceber que isso não funcionava. Mas pegar literalmente nos álbuns também não teria funcionado. Ao criar uma ponte entre "O Caranguejo das Tenazes de Ouro" e "O Segredo do Licorne", Spielberg inventou uma história que lhe pertence, apesar de nos fazer pensar permanentemente nos álbuns. O verdadeiro tema do filme é a criação de um laço forte entre Tintin e Haddock, entre um quase miúdo e esse destroço que deve atravessar a sua história de família para reencontrar a sua identidade.

Mesmo as sequências provenientes dos álbuns – como o relato de Haddock sobre os feitos do seu antepassado – utilizam soluções diferentes. E isso é um momento de coragem tanto em Hergé como em Spielberg. É conveniente não olhar para o filme com uma atitude purista, como os melómanos que, no concerto, não conseguem tirar os olhos da partitura. O filme existe, com a sua linguagem e o seu estilo.

E os álbuns de Hergé continuam a existir plenamente, quando não há uma nova aventura de Tintin desde 1976. Pessoalmente, apetece-me agradecer a Spielberg: ele vai dar a centenas de milhares de pessoas o desejo de descobrir os álbuns de Hergé. 

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