Dâm-Funk quer trazer o amor de volta ao funk

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Natural de Pasadena, subúrbio de L.A. “que é considerado um bairro de sangue”, viu “muita merda” mas nunca deixou “?que essa merda [o] atingisse”

Há dois anos lançou “Toeachizown”, quíntuplo LP de funk sujo e atmosférico - e ficou nas ancas do mundo. Bem, do melhor dos mundos. Agora regressa com “InnaFocusedDaze”. Mais perto do formato canção, mas ainda inacessível a “rabos leves”

Como tantos outros músicos, quando Dâm-Funk (DF) era miúdo detestava a escola. Não porque o incomodasse aprender. O problema era a rotina. "Tocava a campainha e tinha de ir para as aulas. Que merda é essa? Porque é que tem de haver uma hora marcada para aprender?"

Haveria várias formas de responder à dúvida de DF - podia argumentar-se que se não houvesse um local chamado escola, uma divisão dos alunos em idades e turmas, professores designados e matéria prescrita para ensinar, seria difícil que a maior parte dos miúdos alguma vez aprendesse alguma coisa. Mas o ponto dele é outro. DF detesta "rotinas e obrigações". "Não as suporto, nunca suportei". Não apenas as dos outros, as suas também. Sendo um trabalhador incansável, passa a maior do tempo a escrever canções, mas é com alegria que admite que "às vezes não sai nada durante dias" e isso não o incomoda. Porque depois, se for preciso, fica "três dias acordado a fazer uma canção".

Este homem tem o seu mundo e a sua forma de fazer as coisas. E não vale a pena tentar convencê-lo a fazê-las de maneira diferente: foi esta crença no seu desregramento que o levou a esperar 20 anos pela estreia discográfica, adiando-a até que tudo estivesse como ele gostava para depois editar uma quantidade absurda de canções.

O disco que as reuniu, um LP quíntuplo chamado "Toeachizown" (deve ser lido como "To Each It's Own" embora também possam optar por "Touchy Zone" que ele até acha graça), lançado em 2009, é um daqueles objectos que nasceu para ser apelidado de "cometa": surgiu do nada, era diferente de tudo o que estava a ser feito e nitidamente irrepetível.

Era um disco de boogie-funk, assente em sintetizadores vintage do final dos anos 80, que DF climatizava em atmosferas rarefeitas - o tipo de disco que propõe uma viagem por um longo fim-de-semana repleto de narcóticos, mas em que a sexualidade daqueles ritmos se esvanecia na sujidade do som. Não era um disco meramente hedonista, era um longo épico sobre um hedonista que nunca escapava à sua mente. Era The Weeknd com experimentação no lugar da balada, com vórtice mental no lugar da explosão do refrão.

Mas "cometa" é tudo o que Dâm-Funk não quer ser. "Para ser honesto "Toeachizown" não era acerca de grandes declarações humanas ou estéticas", dizia-nos há uns meses, à mesa da Bica do Sapato (Lisboa) antes de uma actuação no Lux, enquanto se delongava numa cigarrilha de cheiro aprazível. "Apenas queria que as pessoas percebessem que eu não era um cometa - queria mostrar que havia muita gente que já tinha feito o que eu estava a fazer, que o meu som vinha de um sítio. E isso implicava explorar aquele som".

Sozinho

Explorar, explorou: a simples duração do disco teria sido suficiente para chamar a atenção para este homem. Mas a sua capacidade de ser simultaneamente sombrio e caloroso, a própria imagem de DF na capa (óculos de sol a ocuparem parte da cara, fio de barba definido, clarões de azul e vermelho contrastantes), a escassíssima informação a seu respeito, tudo isto contribuiu para uma aura de mistério à sua volta.

Surpreendentemente o disco criou culto - e de repente ele apareceu por todo o lado, uma entrevista aqui, um DJ set acolá. Quando o encontrámos descobrimo-lo acessível e conversador ao ponto de nos contar a infância e antecipar logo ali o que viria a ser o seu disco seguinte, o EP "InnaFocusedDaze", acabado de sair - quatro canções lânguidas em que faz uma aproximação a Prince, um amor de garoto.

"Comecei a tocar bateria aos seis anos, ao som de metal e de funk, depois desatei a comprar teclados. Penso que ‘1999', do Prince, foi uma grande inspiração porque percebi que podia fazer tudo sozinho".

"Sozinho" é uma palavra que aprecia. Natural de Pasadena, subúrbio de L.A. "que é considerado um bairro de sangue", viu "muita merda" mas nunca deixou "que essa merda [o] atingisse". "Se vens dali podes acabar gangster - mas também pode acabar por ser um tipo positivo", diz, antes de explicitar mais uma das suas regras muito próprias: "Eu tinha apenas uma lei: não me fodam - porque se me foderem, eu fodo-vos em dobro. Bem, as pessoas vão sempre foder-nos. Mesmo os nossos pais. Mas aguenta-se".

Pela sua descrição, Funk era aquilo a que os americanos chamam "oddball", o tipo de pessoa que só é passível de descrição com recurso a palavras compostas em alemão, que se move à margem dos gostos dominantes, e cujo autismo em relação aos códigos sociais lhe confere uma certa graciosidade - os resquícios dessa estranheza ainda se notam hoje, quando se apresenta em palco sozinho com um daqueles sintetizadores portáteis que parecem saídos de uma capa de disco dos Modern Talking.

Filho único de um casal que se escusa a descrever, "ia de bicicleta sozinho para as lojas de discos e decorava quem produziu o quê e quem escreveu o quê". "Era assim que eu combatia a minha solidão", acrescenta. A crer na sua auto-descrição, "ouvia de tudo". "Na altura os Slave [uma banda glam indescritível] eram - e ainda são - um dos meus grupos preferidos, apesar de não estar interessado na ideia de grupo".

Esta propensão para a disparidade de gostos - metal e glam e funk - e para a fruição solitária dos seus prazeres leva-o a dizer a dada altura que levanta "a voz pelos solitários", afirmação que poderia ser aceitável não fosse a sua voz raramente se ouvir nas suas canções.

Como muitos outros miúdos de L.A. deu por si "a dada altura a andar com gente popular". Mas afiança: "nunca tratei os outros como lixo. Eu diverti-me mas acendeu-se-me uma luz antes de cair num buraco como aconteceu a muitos dos meus amigos. Comecei a ficar em casa a acabar canções". Podíamos jurar que está a falar sobre drogaria da grossa, mas ele não gosta de se alongar sobre certos detalhes.

Acabar canções deu trabalho - 20 anos de trabalho. A grande sorte de Dâm aconteceu quando um dia conheceu um tipo numa loja de discos que apreciou o seu gosto musical - "eu sempre fui um grande coleccionador" - e o convidou para passar música no clube dele. Foi numa dessas festas que Peanut Butter Wolf - dono da editora Stones Throw e lenda viva do bom gosto musical - o viu atrás dos pratos. "E depois investigou-me nessa magnífica invenção que já morreu chamada Myspace".

"O Peanut Butter Wolf descobriu a minha caixa de segredos. Fiquei bastante surpreso por saber que ele gostava das canções que eu estava a fazer - uma cena tipo boogie-funk, L.A. à noite circa 1988-1990". A partir daí o destino de Dâm-Funk estava traçado: tinha liberdade total para fazer o que quisesse - e ia editar pela Stones Throw.

Passou dois anos fechado a gravar "Toeachizown", declaração de amor ao funk, porque "o funk, na margem com a soul, não tinha ninguém que o fizesse do coração". "Eu sabia que a música que ia editar ia ser diferente de tudo o que estava a ser feito. A minha música é para gente que é diferente, aventureira e não tem medo de ser diferente. E se tem medo, aguenta e é-o à mesma".

Vinte anos depois de começar a sonhar em pôr discos cá para fora Dâm-Funk regressa com um EP que, sendo mais acessível, mantém os níveis de estranheza e fascínio: "Eu crio um som sujo e quero manter isso. Não vou fazer discos de rabo leve".

Mas para ele mais importante que isso é "poder mostrar que qualquer um pode alcançar os seus objectivos se trabalhar muito". "Eu demorei 20 anos. Estou aqui - isto acontece. É um sonho e acontece".

Deus abençoe a América. E os sintetizadores parolos.

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