"A literatura americana apenas olha para o seu umbigo"

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"Ferrugem Americana" é uma dura história de lealdade entre amigos, mas também uma análise ao fim do sonho americano. Philip Meyer, o autor deste acontecimento literário, explica que escreveu este romance contra uma certa ideia "autobiográfica" da literatura americana - Roth incluído

Philipp Meyer (n. 1967) cresceu numa família pobre em Baltimore, e assistiu ao declínio da indústria pesada americana. Algumas dessas suas memórias, do desemprego, da pobreza e do desespero, serviram-lhe de inspiração para o romance "Ferrugem Americana", cuja acção decorre numa pequena cidade da Pensilvânia, nos dias de hoje, e num cenário pós-industrial. Publicações conceituadas como o "New York Times" e o "Washington Post" não foram parcas em elogios, quer ao livro quer ao talento do autor. Meyer, que começou por publicar contos na revista literária de culto "McSweeney's", fundada pelo escritor Dave Eggers, tem ganhado várias prestigiadas bolsas americanas de criação literária.

Antes de se dedicar à escrita, Meyer trabalhou como paramédico num hospital de Baltimore, e nos últimos anos, antes de começar a publicar, foi consultor de um banco suíço na Wall Street. Passou por Lisboa e falou com o Ípsilon. Foi polémico. E não poupou palavras para dizer o que pensa da actual literatura americana: diz que tem sérias dúvidas sobre se as actuais histórias americanas resistirão ao passar do tempo. Porque "a arte se tornou paisagem de si própria" em vez de cumprir a sua função, "ser uma paisagem para o exterior", e isso "é insano e idiota".

Escreveu "Ferrugem Americana" no Michener Center for Writers [Universidade de Austin, Texas]. Como é que esta estada num lugar assim afectou o seu trabalho?

Em grande parte, foi muito positivo, pois eu tinha uma bolsa de três anos para estudar e escrever. De certa maneira, fui pago para escrever o livro. E isso foi crucial, pois como todos sabemos o difícil é arranjar tempo para escrever, e se tivermos de nos preocupar, também, em arranjar dinheiro para viver, então é muito difícil. O lado mau da coisa é que o trabalho é criticado pelos outros estudantes, e isso é terrível. Nenhum escritor profissional mostra o seu trabalho enquanto o faz. E ali havia um painel de 12 pessoas que julgavam o meu trabalho. Enquanto falavam sobre o meu romance, eu fingia estar a tomar notas do que eles diziam mas, na verdade, estava a fazer a minha lista de compras ou a anotar o que ainda tinha de fazer durante o resto da semana [risos]. Ignorava-os completamente. É melhor ignorar um bom comentário, se ao mesmo tempo ignoramos também dez maus. Porque há qualquer coisa que fica a trabalhar na cabeça mesmo que nós não queiramos.

Mas há a ideia de que na América o editor trabalha com o escritor, enquanto na Europa isso não é tanto assim.

Isso depende muito. É quase uma coisa do passado, essa interacção muito chegada entre o editor e o escritor. Pessoalmente, não gosto de mostrar a ninguém o meu trabalho antes de estar completamente acabado. Mas as pessoas trabalham de maneiras diferentes. Isso acontece muito com os jovens editores, quando ainda estão confusos e dizem ao autor "Eu quero trabalhar o livro contigo". Claro que eles querem tirar para fora o melhor que o autor tem, serem uma espécie de "coach". Mas o autor arrisca-se a ser um "escritor-fantasma" do editor.

Entrar na consciência das personagens era uma das suas metas quando começou a escrever o livro?

Em literatura pode-se entrar mais fundo na consciência da personagem do que no cinema. Neste romance eu quis ir bem fundo nesse aspecto, tentar representar a consciência na página. E fazer isso de diferentes maneiras. Talvez por isso eu admire tanto Faulkner, Joyce, Virginia Woolf. Todos eles fizeram isto. Li-os para perceber como é que o faziam, e talvez também para inventar uma maneira própria de eu o fazer. Há também um autor escocês, James Kellman, que faz isso, mas de uma maneira algo diferente. O Kellman também foi muito importante para mim.

A morte do "sem-abrigo", no romance, como que abre a porta para tudo o que vem a seguir. Já tinha essa ideia desde o princípio? Como se essa fosse a chave que abriria o livro?

Não, de maneira nenhuma. Para mim toda a boa literatura vem do subconsciente. Quando eu começo a trabalhar tenho uma ideia muito pequena do que vou fazer, por vezes só uma ideia de parte de uma personagem. Neste caso, lembro-me claramente, tinha apenas uma imagem que me surgiu: vi dois rapazes ao longo de um rio, numa paisagem rural, pós-industrial, e eles corriam para longe de qualquer coisa ou de qualquer lugar. Foi daqui que a história começou. Não sabia como haveria de chegar aos rapazes. Devo ter escrito cerca de 400 páginas antes de saber o final. O meu trabalho é sempre o de ir reescrevendo, sem me preocupar muito com o que aí virá. E o reescrever inclui também o reestruturar.

Para a preparação do romance teve muitas conversas com pessoas que estiveram desempregadas na altura do declínio da indústria pesada americana?

Falei com 30 ou 40 pessoas que à época foram despedidas das siderurgias, com polícias, e [tive] muitas outras conversas informais com gente ao acaso que vivia nessa zona da Pensilvânia. Andei bastante a pé por toda esta região, por aquele vale, que existe na realidade. A cidade é ficcional, mas é um modelo muito típico das cidades da região. Todas as coisas são exactas nos detalhes.

Trabalhou na Wall Street para um banco suíço, o UBS. Mas como assunto para o romance escolheu um cenário que fica muito longe desse "glamour" em que a nova literatura americana parece movimentar-se tão bem. Porquê?

Para um escritor honesto, normalmente, um livro representa três ou quatro anos da sua vida. Tem de se estar fascinado pela história que se está a contar. E durante os anos em que trabalhei na Wall Street não encontrei nenhuma história suficientemente interessante. Se fosse para um livro de "não-ficção", sim, há muita coisa com que um autor se pode entreter. O que acontece em Wall Street é assunto para ser falado e discutido nos jornais.

Como é que vê a nova literatura americana [Foer, Chabon, Franzen, Ferris, Mansbach, Russo, etc.]? O seu romance parece deslocado em relação a esses autores...

Eu gosto de os ler como entretenimento. Não me sinto influenciado por eles nem pelas coisas que os influenciaram e influenciam. Nem sei que coisas são essas [risos]. Só sei que me sinto muito diferente deles. Não os julgo, não digo que são bons ou maus. Só sei que eles são diferentes de mim [risos]. Acho que o último meio século da literatura americana não foi um período forte. Houve um focar exagerado na ideia de arte em si mesma, e naquilo que a arte verdadeiramente significa. Em vez de ser vista como uma espécie de paisagem para o exterior, a arte tornou-se paisagem de si própria. E isto é mau para a arte, e é mau para as pessoas. E é também um bom caminho para tornar a arte irrelevante. A quem é que interessa saber, no fim, o que é que significa exactamente fazer arte? O método artístico tornou-se mais importante do que a própria arte. Isso é insano e idiota.

Por isso prefere os modernistas?

Absolutamente. Esses que começaram a morrer na década de 40 eram melhores artistas, estavam interessados no que significa ser "humano". Estavam interessados na maior questão moral de todos os tempos. Essa é a razão por que a Bíblia, o Corão e os inúmeros clássicos gregos continuam a ser lidos. É muito simples. Não é porque as histórias são muito boas. É porque essas histórias são muito humanas, os nossos conflitos e lutas continuam a ser muito importantes. E se alguma das histórias escritas nos nossos tempos sobreviver mais do que cem anos, se alguma arte sobreviver, de certeza que não será porque o foco era o seu próprio umbigo.

Concorda com a controversa afirmação do secretário da Academia Sueca, em 2008, ao dizer que a literatura americana é demasiado "isolada e insular"?

Nem vejo a razão da controvérsia. A literatura americana anda há 50 anos a olhar para o seu próprio umbigo, como se nada mais existisse para além dela e dos seus mecanismos e métodos artísticos.

O que acha das obras do Philip Roth?

É um desses autores: escavou muito fundo dentro de si próprio e da sua própria experiência. Raramente se pensa que aquilo é completamente inventado. Dá sempre a ideia de que as personagens são partes dele. Roth está a escrever um ténue disfarce de si próprio. Isto não significa que ele não seja bom. Tem alguns livros muito bons. Mas não me vejo a escrever nessa tradição. Preciso de inventar coisas. Não acredito em autobiografias nem estou interessado nelas. Eu vivo todos os minutos dentro da minha cabeça, por que razão é que eu quereria escrever sobre isso? Mas nós somos todos diferentes. Roth vai ficar na história da literatura? Só o tempo o dirá.

Conhece a literatura europeia?

Sim. Saramago. Do Günter Grass li quase tudo. James Kellman, de quem já falámos. Camus é um dos grandes. Lars Gustafson, que foi meu professor em Austin. Outro de quem gosto muito é o Max Frisch. Como disse, há um problema com a literatura americana. Acho que os escritores europeus, apesar de isto ser um bocado uma generalização, estão mais interessados em questões profundas. Sentem-se mais confortáveis. E os leitores, como eu, também.


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