A música de um Homem da Luta

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Nos Homens da Luta, Jel encarna Neto, personagem saída do PREC para as ruas do século XXI. Agora que a canção de protesto volta a dar que falar, desafiámo-lo para uma "jukebox" Ípsilon a ela dedicada. Conceito abrangente, de José Afonso a Cee-Lo Green, de Dylan aos Pistols. Retivemos isto: "A canção é uma bomba atómica e o humor é caruncho"

Entrámos na casa de Jel com uma ideia definida: conduzi-lo por uma "jukebox" Ípsilon dedicada à música de protesto - em modo deveras abrangente, de José Afonso a Cee-Lo Green ou Beastie Boys. Jel, aliás Nuno Duarte, aliás o Neto dos Homens da Luta. Eles que, entre o terramoto provocado pela vitória recente no moribundo e esquecido Festival da Canção e os slogans e os "ti-ki-ri-ris" na manifestação apartidária de descontentamento geral de 12 de Março, andam agora nas bocas do mundo.

Jel entusiasmou-se com a ideia da "jukebox". Ao longo de mais duas horas, distinguiu Manuel João Vieira como músico destinado à imortalidade, desvalorizou os Sex Pistols e não conteve a admiração por Caetano Veloso e Tom Zé. Mas um homem não escapa ao seu contexto. "Há quem goste de rock sinfónico, eu pico toda a música com mensagem social e política". E, portanto, neste preciso momento que vivemos é aí, à política, que toda a "jukebox" nos conduz. Toda? Não. "Fuck you!", bomba soul de Cee-Lo Green, leva-o a "Stevie Wonder, Al Green e toda a melhor música da Motown" e a um elogio: "Ao Cee-Lo Green, mesmo sendo gordo e tal, não deve faltar assédio." Mas isso é música de 2010. É passado. O presente é agora. E foi pelo presente dos Homens da Luta que começámos. Ou seja, "A cantiga é uma arma". O Grupo de Acção Cultural (GAC), em 1975. Reacção imediata: "O GAC! É daqui que vêm os Homens da Luta."

Jel e o irmão Vasco Duarte (o Falâncio dos Homens da Luta) cresceram a ouvir "Fausto, José Mário Branco, Luís Cília, todos eles". A acompanhar pai e avô nas manifestações do 1º de Maio e no Avante. Para iconografia, ele inspirou-se em José Mário Branco e o irmão em José Afonso. "A ideia", explica, "era transportar duas personagens da altura para a actualidade e fazê-las agir da mesma forma, mas assumindo todas as contradições que isso hoje implica." Protegidos pelas personagens, podiam dar uso ao absurdo e disparar em vários sentidos. E por isso (e agora ouve-se "Movimento perpétuo associativo", dos Deolinda), quando Jel mete o bigode e o cabelo para o lado e veste a roupa 70s, "tudo é possível." Por exemplo, o Neto quer acabar com a pobreza porque não gosta de pobres. "Os pobres não lhe pagam copos, nunca lhe pagam o jantar, não lhe pagam uma 'lap dance' numa casa de 'strip'." Continuamos a ouvir os Deolinda e ele já elogiou o compositor Pedro Silva Martins, "inteligentíssimo na análise, na crítica e na ironia", e já elevou "Parva que sou" a "primeira senha para a manif de 12 de Março".

A manifestação foi para os Homens da Luta o corolário de um percurso. "Há uma frase do O'Neill de que gosto particularmente: 'Vou subir ao povo!'. Por isso sempre gravámos na rua, no meio das pessoas, quebrando a barreira entre o artista no estúdio e o público lá longe". Na manifestação, sentiu que o grupo se cumpria. Não levou porrada como quando os Homens da Luta gritaram pelos direitos dos animais à entrada de um circo, não foi maltratado por seguranças privados como quando irrompeu numa acção de campanha de José Sócrates no Seixal - "e até estávamos lá para o apoiar, porque o Sócrates é óptimo para a luta". Nada disso: "Foi um dos dias mais felizes da minha vida, apesar de todos os problemas em que estamos metidos. Ver toda aquela malta na rua, a sorrir, não foi uma celebração, foi uma catarse". E, diz ele, um sinal de mudança. Dá o seu exemplo. Naquele dia, os Homens da Luta decidiram abrir uma cooperativa. "Porque tem tudo a ver connosco, porque é o passo certo a dar". Lá atrás ouve-se o Caetano Veloso tropicalista de "Eles" e ele já deixou o seu entusiasmo pelo Brasil - "é o grande país do novo século: é Portugal à solta, como diria Agostinho da Silva" -, dar lugar ao entusiasmo com a cooperativa. Porque "isto não pode ser só paleio e agora é altura de partilhar. Já que estamos com esta atenção toda sobre nós, já que conseguimos vender espectáculos, vamos partilhar e criar mais riqueza para todos."

Nuno Duarte é o homem que teve uma breve carreira musical como Jel ("Viola-me eléctrica" foi o single mais conhecido) e que vê nesse passado um "erro de casting". "Não tenho ilusões: como músico sou medíocre. Mas [nos Homens da Luta] tenho a personagem, o que me liberta desse complexo". Os Homens da Luta, claro, não são música no sentido tradicional. Ele explica: "A cantiga é uma bomba atómica e o humor é caruncho, vai minando lentamente". O seu grupo, naturalmente, é a reunião das duas. O gosto melómano de Jel, de resto, tem sempre essa marca. Não na procura do humor, mas no sentido de não sorver música sem lhe perceber o contexto. Vejamos.

Bob Dylan e "The times they are a-changing": "Se procurarmos a tradição que o Dylan representa, chegamos quase ao início da civilização. É o gajo que vai para a rua, de terra em terra, a dizer as verdades. A puxar pelo lado dos fracos, sempre. Uma voz popular que vem de baixo, que pertence às ruelas e aos cantinhos escuros."

Os Corações de Atum de Manuel João Vieira, em "Quando eu ganhar o Totoloto": "O Manuel João é um libertário puro, é o Bocage. Não tem medo de arriscar e não tem medo do ridículo. Corajoso, inteligente, interventivo, honesto. O tempo é o grande juiz disto tudo e o Manuel João é um dos que vão ficar."

Entre o "Pretty Vacant" dos Sex Pistols, música revolucionária que não lhe interessa particularmente - "o grande feito foi provocarem o nascimento de uma série de bandas muito mais importantes do que eles, como os Joy Division ou os The Fall" -, e os Beastie Boys que servem para análise da psicologia americana - "os americanos têm um desapego ideológico muito livre, que é precisamente este 'fight for your right to party': o explorador que chega ao novo mundo e diz 'que se lixe o passado, 'bora para a frente'" -, deparamo-nos com "o" caso sério na vida musical de Jel. Soará demasiado óbvio a uns, dado o imaginário dos Homens da Luta, e parecerá mera provocação a outros, que vêem na acção do grupo uma sátira a esse mesmo imaginário, mas, quando ouve "Venham mais cinco" (fomos previsíveis), Jel é peremptório: "O Zeca Afonso é o artista que mais admiro em todo o mundo. Enclausuram-no na política, mas é muito mais do que isso. Tem o surrealismo de 'Acunpunctura em Odemira' e de 'Nefertiti não tinha papeira'. Foi o primeiro a fundir música africana com música tradicional portuguesa, compreendendo que é na fusão, na mestiçagem, que reside a evolução."

Jel sabe que há cantores de intervenção dos tempos do PREC que torcem o nariz ao que faz e não tem certezas quanto aos seus Homens da Luta - "só o futuro dirá se estamos a agir bem" -, mas tem um conforto. "Tenho falado com a Lena, filha dele, e agora com a Zélia [a sua mulher], a explicar-lhes o que fazemos, e elas dizem-me que se o Zeca estivesse vivo ia adorar-nos porque carregamos um pouco do espírito de agitação e inquietação permanente que ele tinha". E esse é o único elogio de que Jel, o Neto dos Homens da Luta, necessita.

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