Quando um americano vai comprar armas, até vai em excursão familiar

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Comprar armas pode ser um programa familiar de sábado Shannon Stapleton/Reuters

Os Estados Unidos têm a maior concentração de armas de fogo per capita: calcula-se que um em cada três americanos possui uma arma. "Existem tantas armas que seria preciso o Exército para desarmar o país", diz Randy Simmons, 55 anos, um coleccionador que está à procura de antiguidades ou raridades na feira de armas de Chantilly, no estado da Virgínia. "As pessoas neste país têm convicções tão fortes sobre o porte de arma que a única forma de conseguir que entreguem as suas armas é arrancá-las dos seus dedos frios e mortos. Por outras palavras: só por cima do seu cadáver."

Está uma manhã fria de sábado, mas as filas vão crescendo à porta do Dulles Expo, um pavilhão de exposições em Chantilly que durante três dias acolhe lojas e comerciantes de armas, sobretudo locais mas também de outras zonas do país. Um cartaz anuncia: "The Nation"s Gun Show." "Qualquer coisa de que precise encontra aqui", explica um jovem loiro, hesitando responder a perguntas de uma jornalista. Ele age como se tivesse sido emboscado. Sim, fez compras; não, não vai revelar o que comprou. Não vale a pena insistir.

Uma feira de armas é em grande parte uma convergência de testosterona com bonés de basebol. As mulheres são uma minoria, e sempre na qualidade de acompanhantes. Bem entendido, à excepção do homem branco (de todas as idades), tudo é uma minoria. Há bebés de colo e crianças em fardas militares: quem diria, um programa familiar para sábado de manhã. O sotaque dominante é sulista. A poucos metros da entrada, uma rapariga com um boné da National Riffle Association (NRA), o influente lobby pró-armas, recruta novos aderentes: "Quem se inscrever na NRA entra de graça." Por 12 dólares, recebe-se um pequeno bilhete rectangular semelhante aos antigos bilhetes de cinema. Avisos na porta: "Proibido armas carregadas! Sem excepções!" e "Descarregue a sua arma agora". A rapariga que recolhe os bilhetes pergunta: "Traz alguma arma carregada?" A organização parte do princípio que o visitante está de boa-fé. Se a resposta for negativa, não é inspeccionado. E entra no pavilhão.

Compradores muito concentrados percorrem as duas centenas de expositores. Pistolas de cano longo, revólveres cor-de-rosa a pensar num público feminino, punhais com cabos ao gosto do cliente, espingardas com baioneta, AK-47, peças de época, coletes à prova de bala, cartuchos vazios para fabricar as suas próprias balas, metralhadoras, coldres.

Atentado ajudou a vender

Qual é a melhor arma para auto-defesa? "Errr, é como perguntar qual é o melhor carro", diz o vendedor da Rabbit Ridge, uma loja da Virgínia. "Eu gosto da nove milímetros."

Uma das armas mais populares é a semiautomática Glock 19, fabricada na Áustria. Preço: 500 dólares. Foi a arma usada por Jared Loughner, 22 anos, há um mês, em Tucson, no Arizona, quando disparou sobre um grupo de pessoas num encontro político, matando seis (incluindo um juiz federal e uma menina de nove anos) e ferindo 13, entre elas a congressista democrata Gabrielle Giffords. Depois de Tucson, as vendas da Glock 19 dispararam, como se a tragédia a tivesse convertido numa arma famosa. A procura de carregadores de grande capacidade também subiu - Loughner usou um com capacidade para disparar 30 tiros sem interrupção.

"Quando uma coisa dessas acontece", explica David Heath, 56 anos, proprietário da Guns & Ammo Warehouse, em Manassas, "os políticos reagem logo: "Vamos proibir os carregadores de grande capacidade." E deixa as pessoas preocupadas, que correm logo a comprar carregadores antes que sejam banidos. Não é a melhor forma de comprar armas, porque é motivada pelo medo."

Tucson reacendeu a discussão sobre a necessidade de maior controlo no porte de armas, que ocorre sempre que acontece um tiroteio de larga escala. A imprensa americana publicou editoriais apelando ao maior escrutínio dos compradores de armas - apesar de ter um historial de complicações mentais, Loughner não teve dificuldade em comprar uma Glock 19 numa loja. Defendeu-se a urgência de proibir a venda e uso de carregadores de grande capacidade. Esperava-se que o presidente Barack Obama incluísse a necessidade de leis mais restritivas no seu discurso sobre o estado da União. Quando não o fez, a esquerda ficou desapontada, mas o tema esmoreceu rapidamente.

Por todo o país, as feiras de armas prosseguiram o seu business as usual. "Esperamos 20 mil pessoas", diz Steven Elliott, um homem muito alto, que organiza feiras de armas anuais, nos estados de Virgínia, Virgínia Ocidental, Pensilvânia e Ohio. É uma participação acima do habitual. Com uma falta de pudor muito americana em matéria de lucro, diz que ele e a mulher organizam as feiras "para ganhar dinheiro".

"As pessoas aqui acreditam na liberdade individual: o que eu faço é comigo", diz David Heath. Esta convicção, com raízes históricas que remontam à génese dos Estados Unidos, está na base de coisas que um europeu tem dificuldade em compreender, como a relação dos americanos com as armas ou a profunda rejeição do novo sistema de saúde por parte da população (a nova lei tornou obrigatória a aquisição de um plano de saúde para todos os cidadãos). No fundo, o direito a ter porte de arma é apenas mais uma expressão do excepcionalismo americano.

É tentador achar que existe uma relação de causalidade entre ser de direita e ser pró-armas. Mas a questão é mais complexa do que isso: Gabrielle Giffords, a congressista atingida em Tucson, é tida como uma democrata moderada e, no entanto, defende o direito ao porte de arma.

É difícil pensar em alguém na televisão americana mais à esquerda do que Bill Maher, que considera a NRA um "lobby de assassinos". Mas o humorista e comentador admitiu há dias que tem uma arma em casa. A posição que a maior parte dos políticos prefere ter em relação a esta questão é de silêncio, porque há a percepção de que defender um maior controlo no comércio e posse de armas significa perder votos.

"Obama quer a tua arma"

Em conversas ouvidas na fila para entrar na feira, Obama é persona non grata. No interior, uma banca vende autocolantes que dizem "Obama quer a tua carteira e a tua arma", "Obama socializou e sodomizou a America", "Obama-Osama o mesmo". Num deles, há uma fotomontagem de Obama com um turbante e a frase: "Algures no Quénia uma aldeia tem saudades do seu idiota." Um outro tem uma imagem de um leão com a legenda "Leão africano" e uma imagem de Obama, onde se lê "Africano mentiroso". Os autocolantes foram fabricados "em Dixie [alcunha conotada com o Sul] por americanos orgulhosos".

Haverá algum democrata na feira? Deve haver, diz David Heath. O dono da loja Blue Ridge, um afro-americano, afirmou publicamente que votou em Obama. "Claro que isso lhe trouxe dissabores", explica Heath, sem especificar o que isso quer dizer.

A Virgínia é um dos 39 estados americanos mais permissivos em relação a armas. Qualquer pessoa pode ter licença de porte desde que não tenha cadastro criminal. Para comprar uma arma só precisa de dois documentos de identificação - normalmente, a carta de condução e outro -, ambos com a morada do cliente. No momento da transacção, o comprador preenche um breve formulário onde lhe é perguntado, entre outros elementos, a raça e cadastro criminal. Um residente estrangeiro legalmente nos EUA é elegível. Os vendedores têm acesso a uma base de dados policial onde podem verificar o historial do cliente e confirmar as informações.

Um asiático vende tasers [armas não letais de electrochoque] made in China. Um dos modelos tem uma potência de 350 mil volts. Outro, 2,5 milhões de volts. O vendedor faz uma demonstração. Um estalo de 2,5 milhões de volts, intimidante. É legal? "Onde é que vive?" Washington, D.C. "Em D.C. não pode andar com uma coisa destas no bolso, mas pode tê-la em casa. Na Virgínia, pode andar com ela no bolso."

Randy Simmons lamenta morar no estado vizinho de Maryland, e não na Virgínia. Maryland tem uma lei mais restrita em relação às armas: "Não nos deixam fazer nada." No espectro pró-armas, Randy, um inspector da construção civil, talvez seja um moderado. Por exemplo, é contra a venda de armas militares num sítio destes. "Não me parece que precisemos delas na nossa sociedade. Passei 20 anos no Exército, por isso estou-me nas tintas para as armas militares. Acho que interessam às pessoas que não estiveram no Exército e queriam ter estado. Eu chamo-lhes as armas de plástico, as armas Mattel: AK-47, M16, AR-15..."

"As armas salvam vidas"

Max Padon, 69 anos, tem uma barba branca e cara de pregador. É um voluntário da Liga de Defesa dos Cidadãos da Virgínia (VCDL), um lobby pró-armas local, "mais forte do que a NRA", garante. "Nos últimos dois anos conseguimos avançar imensa legislação no sentido de uma maior liberalização e protecção dos direitos dos donos de armas." Ele e outros voluntários da VCDL estão a distribuir um autocolante laranja redondo onde se lê: "As armas salvam vidas." Existem estudos que o comprovam, diz Max, e ele pode recomendar uns livros. "Na maior parte das vezes, essas armas nunca são disparadas. No ano passado, um dos nossos membros foi ao banco. Como o conhecem lá, estão habituados a vê-lo com uma grande .45. Mas a certa altura as pessoas ficaram com expressões engraçadas e riram-se e ele perguntou o que se passava. "Não viste aquele tipo?" E ele: "Qual tipo?" Disseram-lhe: "Um tipo entrou no banco com uma máscara de esqui. Quando te viu, deu meia volta e foi- se embora!"" Segundo Max, este é o género de história "que não aparece nos jornais, mas acontece todos os dias neste país".

Mas a feira não mostra apenas uma América que acredita no direito de autodefesa dos seus cidadãos. Ela reflecte uma cultura de guerra que parece reclamar uma atitude preventiva, como se a segurança do país estivesse sob ameaça permanente. Por que outra razão a literatura do género haveria de exibir títulos como: Guia de Sobrevivência (Volumes 1 e 2), Uma História de Sobrevivência no Colapso que Há-de Vir, Sobrevive! Manual para Catástrofes, Crises e Emergências, Abrigos de Sobrevivência, Kill or Get Killed?

Max pergunta: "Já alguma vez disparou uma arma? Normalmente, as pessoas mudam de opinião depois de experimentarem. Se quiser, um dia destes convido-a para ir a um campo de tiro."

Até há um ano, Rene Sanchez, 32 anos, camionista, nunca tinha tido uma arma. Enquanto vivia em Maryland, "não estava muito interessado". Mas quando se mudou para a Virgínia Ocidental, isso mudou. Hoje pratica num campo de tiro da NRA. O filho de cinco anos acompanha-o. Considera importante educá-lo sobre armas. "Em casa ele segura na minha arma. Eu digo-lhe que não é um brinquedo. Se ele perceber para que serve, saberá que não deve brincar com ela. Tenho a arma à vista em casa e ele ignora-a. Já está habituado."

É a estreia de ambos numa feira de armas. Planeia comprar alguma arma?

"Definitivamente. A minha mulher quer uma."

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