Steve Lehman, o músico de jazz de quem mais se fala

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Quem assistiu a um dos concertos avassaladores que Steve Lehman deu em Portugal a semana passada terá uma ideia do porquê de toda esta atenção: é o músico de jazz de quem mais se fala. Em palco na Culturgest, o seu octeto destilou uma música poderosa, invulgarmente pura. As emoções que pairavam no ar contrariavam um rigor extremo e um virtuosismo de cortar a respiração. Como diz o "New York Times", "perfeitamente ultramoderno"

Por trás do ar de miúdo, está um dos músicos mais influentes do momento, alguém que é apontado como virtuoso, futurista e genuíno inovador, definindo coordenadas para o futuro do jazz. Numa época em que se fala da virtual impossibilidade do surgimento de grandes figuras inovadoras como o foram Charlie Parker ou John Coltrane, a relevância estética das novas direcções propostas por Steve Lehman ganha particular significado. Ainda mais se pensarmos que a sua música reúne um enorme consenso, dos sectores mais radicais aos mais conservadores, reciclando influências das mais diversas áreas estéticas; be-bop, livre improvisação, third-stream, clássica contemporânea, hip-hop, música para video-jogos ou o tão falado expectralismo. Numa breve conversa com o saxofonista e compositor, procurámos saber um pouco mais do seu percurso e, acima de tudo, perceber o que é isso de "música expectral".

O impacto de Parker

Nascido numa família em que a música fazia parte do dia-a-dia - o pai tocava trompete, na veia clássica de músicos como Maynard Fergusson ou Art Farmer, e a mãe era quem ouvia os sons mais criativos e experimentais, trazendo para casa John Coltrane, Ornette Coleman ou Betty Carter -, Lehman começou cedo a ouvir todo o tipo de música. Aos 6 anos tem as suas primeiras lições de piano e, aos 8, a morte do pai deixa marcas fortíssimas que irão traçar o seu futuro como músico.

Começa a explorar intensamente a colecção de discos do pai e decide começar a tocar saxofone, aproximando-se da sua memória. Recorda: "Queria fazer algo que tivesse a ver com o meu pai e o saxofone era aquele instrumento dourado e brilhante, sem ser exactamente igual ao trompete. Pareceu-me perfeito."

Como sabia que a mãe gostava de Charlie Parker, decidiu oferecer-lhe uma cassete, acabando ele próprio por a ouvir. "Foi como um relâmpago, uma coisa mesmo intensa. Acho que foi essse o primeiro grande 'click' para a música que faço hoje. Foi o grande impulso para querer fazer música, para passar grande parte do tempo a estudá-la. Percebi depois que algo de semelhante aconteceu a muitos dos músicos que ouviram Charlie Parker."

Durante esses anos iniciais, Lehman seguiu o percurso habitual de muitos jovens norte-americanos, tocando em bandas de liceu. "Eu não era muito bom. Adorava tocar, tinha muito apoio, mas não era como um desses super dotados, como Christopher Holliday ou Chris Potter." Totalmente determinado a prosseguir os estudos musicais, quando chegou a altura, na Universidade de Wesleyan, de optar pelas disciplinas principais, não hesitou. "Wesleyan é o que chamam de Universidade de Artes Liberais. Lá podemos estudar Inglês, Psicologia, Matemática, Ciências... e depois escolhe-se a área de especialização. A minha foi música e literatura francesa. Foi lá que conheci Anthony Braxton e comecei a estudar com ele."

Anthony Braxton, compositor, improvisador, uma das grandes figuras do jazz do século XX, permanente explorador de novas linguagens e abordagens musicais, teve enorme impacto no jovem saxofonista, levando-o a explorar ao máximo o seu potencial e ensinando-lhe algo que ainda hoje guia o seu trabalho. "A coisa mais importante na música é ser-se verdadeiro, sobre o que se quer alcançar, a forma como se trabalha, aquilo que se toca. Esse é o tipo de coisa que aprendi com Braxton e McLean." Jackie McLean, saxofonista que fez história nos anos de ouro do hard-bop, é outra das influências de Lehman, levando o músico a guiar de Wesleyan para Hartford para ter lições particulares com ele. "Jackie McLean é provavelmente o músico do qual conheço melhor a obra, todas as suas composições, improvisações, as diversas fases que o seu estilo atravessou ao longo dos anos 70, 80 e 90. Essa ideia de permanente evolução é outra das minhas grandes inspirações, uma ideia apenas que se pode tornar a mais forte. Para além dele, se tivesse que traçar um mapa de influências teria necessáriamente que incluir [Charlie] Parker, mas também Tristan Murail [um dos fundadores da música expectral, juntamente com Gérard Grisey], compositor com o qual tenho trabalhado nos últimos 5 anos." Mas Lehman não fica por aqui e acrescenta ainda: "Michael Finnissy [muitas vezes citado como uma das principais figuras da escola da Nova-Complexidade], ou Wu Tang Clan, todas diferentes influências cuja importância depende de que parte da minha música estamos a falar."

Expectros no jazz

Ao fazer uma breve pesquisa ao termo "música expectral", surge na wikipédia uma nota elucidativa: "a sua práctica foi recentemente alargada para lá do universo da música clássica, estendendo-se ao jazz através do trabalho de Steve Lehman." Afinal o que é isso de "spectral music"? "É difícil explicar, falar sobre isso. É como se tentássemos explicar o be-bop. A forma mais simples que me ocorre será dizer que se trata de uma forma de compor em que são exploradas as propriedades físicas do som, os timbres e a sua composição física. Essa informação, o conhecimento da forma como interagem fisicamente no espaço as diferentes notas, ajuda-nos a organizar os sons numa composição. O que faz uma nota de um saxofone soar diferente da mesma nota tocada num clarinete? São os harmónicos, os overtones, o ataque, o decay...e a cada harmónico acontece algo de diferente após a sua emissão. Às vezes, quando se trata de um som pouco usual, procedemos ao estudo detalhado da onda sonora, mas a maior parte das vezes esse estudo já está feito e nós limitamo-nos a utilizar a informação disponível."

Ao escutarmos o verdadeiro assalto sónico que constituem algumas das improvisações de Charlie Parker ou Albert Ayler, ou o tom ligeiramente nostálgico e narcótico que atravessa toda a música de Ornette Coleman, não será difícil imaginar os avanços que um estudo profundo dessa música à luz dos princípios da música expectral poderia trazer para o jazz.

Nomeado "rising star" por quatro anos consecutivos pela revista "Down Beat", Lehman viu a sua carreira disparar com a edição, em 2009, de "Travail, Transformation and Flow", álbum que o grupo veio interpretar nos recentes espectáculos da Culturgest e Casa da Música e que sucede uma viragem estética iniciada em "Demian as Posthuman". Se o saxofonista era já apontado como um dos mais promissores instrumentistas da nova geração, subitamente toda a atenção se virou para o seu talento como compositor, salientando-se a visão modernística revelada nos seus arranjos. Essa mudança de foco foi deliberada? "Penso que não. Sinto que o meu foco como instrumentista não mudou. O que aconteceu é que passou a haver uma maior integração do trabalho como saxofonista e do trabalho como compositor. Como performer tive de desenvolver uma técnica que me permitisse tocar todos aqueles micro-tons que utilizo nas composições e ainda improvisar de forma livre e fluída. Houve também uma grande evolução pelo facto de ter dispendido grande energia a desenvolver uma comunidade de músicos que conheçam e consigam tocar com rigor a minha música. Procurei pessoas com interesses similares aos meus, que não sintam que estão apenas a trabalhar. A primeira vez que se toca este tipo de música não é fácil. E é isso que quero, forçar os músicos a tocar de forma diferente, a encontrar algo de novo. Isso é o melhor que uma composição para improvisadores pode ter - é difícil ao início mas depois encontra-se algo de novo acerca de nós próprios."

Cada vez mais comprometido com os princípios da música expectral, e a preparar-se para uma temporada em Paris como investigador convidado do IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique), Steve Lehman é bem capaz de já não conseguir voltar atrás. E isso é bom, fazendo adivinhar uma enorme abertura de horizontes para o futuro do jazz.

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