NATO prepara futuro e testa a solidez dos laços transatlânticos

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O novo conceito estratégico da Aliança, o terceiro desde o fim da Guerra Fria, será aprovado em Lisboa Foto: Yves Herman/Reuters

Aprovar o novo conceito estratégico, selar a reaproximação à Rússia e criar um escudo antimíssil. Estes são os objectivos maiores de uma agenda ambiciosa.

O Presidente Obama luta em casa para conseguir do Congresso a ratificação do Tratado START II. É uma peça fundamental da nova aproximação da NATO à Rússia. O secretário-geral da Aliança, Anders Fogh Rasmussen, negoceia com Ancara até ao último instante para afastar as reservas turcas quanto ao novo sistema de defesa antimíssil. São duas questões emblemáticas da cimeira que se realiza em Lisboa para preparar a NATO para um século em que o Ocidente já não poderá ditar sozinho as regras do jogo mundial. Por isso, o ponto "número um" desta cimeira é a aprovação de uma nova “guia de marcha” que lhe permita vingar e ser eficaz num mundo que, nos últimos dez anos, mudou profundamente.

O novo conceito estratégico da Aliança, o terceiro desde o fim da Guerra Fria, será aprovado em Lisboa, depois de uma negociação que levou um ano. Os aliados revêem-se facilmente nele. Naquilo que traz de novo e também nas suas ambiguidades.

O caminho mais curto para o futuro passou pelo regresso aos fundamentos da Aliança. O novo conceito sublinha o que de único une os dois lados do Atlântico - os valores da liberdade e da democracia. Reafirma a ideia de que a NATO ainda é uma organização de defesa colectiva que tem a responsabilidade de garantir a segurança de todos os seus membros. Mas também lhe fornece a doutrina e os instrumentos que lhe permitirão adaptar-se a um mundo onde emergem novos e velhos poderes que reivindicam um papel na segurança mundial e onde surgem novas ameaças à sua segurança e à estabilidade internacional. Um ciberataque ou um atentado terrorista que podem materializar-se a partir de qualquer ponto do globo não têm nada a ver com os tanques estacionados nas suas fronteiras ou com o equilíbrio do terror da Guerra Fria. Um míssil balístico pode partir inesperadamente do Sul e não do Leste.

Quarta-feira à noite, já eram escassas as pontas ainda soltas no texto final do conceito.

Berlim fazia ainda um derradeiro esforço para que o compromisso com o desarmamento nuclear tenha uma expressão mais forte no novo conceito. “Este compromisso é verdadeiramente revolucionário para uma aliança de defesa”, disse Guido Westerwelle, o chefe da diplomacia alemã. Os americanos aceitam o objectivo de um mundo sem armas nucleares que Obama anunciou no seu discurso de Praga, mas não abdicam de uma “NATO nuclear” enquanto houver armas nucleares no mundo. A França, que considera a dissuasão nuclear o pilar da defesa colectiva e que vê qualquer tentativa para valorizar o desarmamento como a transformação da aliança numa simples “agência de controlo de armamento”, é o maior obstáculo às pretensões alemãs. Estava previsto para a manhã um encontro entre a chanceler Angela Merkel e o Presidente Nicolas Sarkozy para tentarem resolver o diferendo.

O problema turco

No reverso desta medalha está o papel do novo sistema de defesa antimíssil – uma das novidades da cimeira, na qual os americanos põem um enorme empenho. Aqui, além do cepticismo francês, que ficará resolvido com a reafirmação do papel da dissuasão nuclear, resta a teimosia de Ancara, disposta a negociar até ao fim. Ontem, o secretário-geral dava à Turquia a garantia de que o acordo sobre o escudo antimíssil não visará especificamente nenhum país, incluindo o Irão.

Havia uma razão para os aliados querem a palavra “Irão” no acordo: fornecer a Moscovo a derradeira prova de que o sistema não visa a Rússia. A NATO quer também fazer da cimeira de Lisboa a cimeira da reconciliação com a Rússia depois do congelamento das relações na sequência da guerra na Geórgia. A defesa antimíssil é uma parte essencial dessa estratégia de reaproximação. A presença do Presidente Medvedev em Lisboa tem já um enorme simbolismo. Mas nem todas as reservas em relação à nova arma defensiva da Aliança pareciam estar ultrapassadas ontem à noite. Na última semana, Rússia e Estados Unidos negociaram intensamente para chegar a um acordo. A Rússia quer ter um peso igual na articulação entre os dois sistemas – o seu e o da NATO. Os EUA não parecem dispostos a ir tão longe. A cooperação que a NATO oferece à Rússia tem um limite: a Rússia não pode ter direito de veto nas decisões da Aliança. Politicamente, é este o ponto essencial. Moscovo aposta num sistema de segurança europeu em que desempenhe um papel principal. A NATO não pode ir ao ponto de lho conceder.

Nada impedirá no entanto que um dos principais objectivos políticos da Aliança tenha sido alcançado. Amanhã haverá em Lisboa, pela primeira vez em muitos anos, um Conselho NATO- Rússia ao mais alto nível.

Ainda uma cimeira de guerra

Mas esta será ainda uma cimeira da guerra do Afeganistão. Esta guerra, que os aliados travam a milhares de quilómetros das suas fronteiras, paira ainda sobre o novo conceito estratégico, apesar de ser uma guerra herdada de um mundo diferente daquele a que a NATO deve adaptar-se agora.

É no Afeganistão, mais do que nos documentos que serão solenemente aprovado para a NATO do século XXI, que os Estados Unidos vão testar a solidariedade dos aliados europeus e que a solidez da aliança transatlântica será posta à prova.

Em Lisboa, a NATO anunciará o início da uma nova fase da guerra, a da “transição”. Depois de uma fase do reforço da campanha militar, a Aliança quer começar a transferir gradualmente, província a província, cidade a cidade, as responsabilidades da segurança para as autoridades afegãs. O objectivo seria completar o processo até ao final de 2014, embora o representante civil da NATO em Cabul, o britânico Mark Sedwill, tenha avisado esta semana que haverá zonas do país onde as operações de combate se podem prolongar para lá desta data. “A frase que usamos no relatório a apresentar em Lisboa é que este objectivo [2014] é realista mas não garantido.”

O maior receio do Presidente americano é que os aliados europeus vejam nesta fase de transição um pretexto para deixarem de investir militar e politicamente no Afeganistão. Em Abril de 2009, na primeira cimeira da NATO em que participou, mostrou-se compreensivo perante a resposta lenta dos aliados ao seu pedido de mais tropas. Agora, quando a sua margem de manobra doméstica se estreita, vai ser muito mais exigente.

Pedirá sobretudo instrutores para o exército e a polícia afegã (900). A experiência passada indica que nem sempre os aliados cumpriram as suas promessas. Estão fartos de uma guerra que é mal compreendida e impopular na Europa e enfraquecidos por uma crise económica que limita os seus orçamentos e a sua popularidade. Ontem, em Berlim, Westerwelle antecipava que a Alemanha pretende reduzir o seu contingente em 2012. A Espanha fixava a mesma data para a entrega da província que controla (Badghis) na mesma altura.

Mesmo que a guerra em Cabul seja hoje vista por muitos aliados com a excepção e não a regra para o futuro, será ela que porá à prova a solidariedade transatlântica até ao último dia e até ao último soldado.

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