O Espaço Schengen para as identificações electrónicas

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Um dos grandes objectivos deste projecto é o de assegurar a crescente mobilidade dos cidadãos Miguel Madeira

Imagine que o Afonso vai fazer Erasmus para a Áustria e precisa de tratar de uma série de papelada administrativa. Ou imagine que o alemão Hans decide montar um negócio em Portugal. Ou imagine que a Laura decide ir viver e trabalhar para a Alemanha e precisa de avisar o governo federal da sua nova morada. Tarefas administrativas deste género — mobilidade estudantil, pedir documentos por via electrónica e alteração de morada — podem ser morosas e aborrecidas. Um calvário burocrático. A boa notícia é que as coisas estão a ficar fáceis.

É para dar resposta a este tipo de casos que nasceu o projecto Stork (cegonha, em português), identifição electrónica europeia, iniciado em 2008 e co-financiado pela Comissão Europeia. Antonio Lioy, vice-presidente do projecto Stork e professor no Politécnico de Turim, disse ao PÚBLICO em entrevista telefónica que, “tal como os europeus se podem deslocar livremente através do espaço europeu após o Acordo de Schengen, o mesmo deve poder acontecer com as identidades electrónicas”. “O Stork é como o Schengen para as identidades electrónicas europeias”, resumiu o mesmo responsável.

Antes de mais, aquilo que o Stork (Secure Identity Across Borders Linked) vai proporcionar é o reconhecimento da identidade electrónica (eID) entre os vários Estados-membros participantes do projecto. Cada cidadão poderá passar a utilizar as suas identidades electrónicas nacionais em vários Estados da União Europeia (UE). Portugal é um deles. “Hoje em dia, o que acontece é que os sites de e.gov dos outros países obrigam os cidadãos a criar novas identidades, novas credenciais e novas passwords... E isso é aborrecido. Com o Stork, se um cidadão tiver recebido uma identidade electrónica do seu próprio país, então ele passa a poder aceder a todos os outros serviços administrativos dos países participantes neste projecto.”

Um dos grandes objectivos deste projecto é o de assegurar a crescente mobilidade dos cidadãos. Antonio Lioy dá um exemplo prático: “Há um crescente número de cidadãos seniores do Centro e Norte da Europa que decidem ir viver para o Sul da Europa (Grécia, Sul de Espanha...) e eles precisam de ser capazes de usar os serviços governamentais nesses países através de uma plataforma online.”

Inicialmente, o Stork contava com a participação de 14 Estados-membros da União Europeia, mas entretanto a iniciativa já foi expandida a 17 países (Alemanha, Áustria, Bélgica, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Itália, Lituânia, Luxemburgo, Holanda, Portugal, Reino Unido, Eslováquia, Suécia e ainda a Islândia).

O Cartão de Cidadão

Qualquer cidadão europeu pode já hoje aceder aos sites administrativos que fazem parte do projecto. No caso português, ao Portal do Cidadão (www. portaldocidadao.pt). Gonçalo Caseiro, vogal do conselho directivo da Agência para a Modernização Administrativa (AMA, o representante nacional neste projecto), explicou ao PÚBLICO como é que os cidadãos portugueses vão poder aceder aos serviços de e.gov dos outros Estados-membros europeus: através do Cartão de Cidadão. O que se passará daqui para a frente é que um português em posse do seu Cartão de Cidadão — ou um cidadão belga, ou finlandês, por exemplo, na posse dos respectivos cartões de identificação nacional — poderá fazer uma série de tarefas administrativas online quando se encontrar fora do seu país.

Peguemos nos exemplos dados anteriormente: o Afonso poderá, por exemplo, através do portal austríaco help.gv.at, aceder a serviços importantes para si durante a sua estadia no país. O Stork será, aliás, uma peça importante no futuro intercâmbio de dados entre universidades de diferentes países, no âmbito do Sistema Europeu de Transferência de Créditos (ECTS). Por seu lado, o alemão Hans poderá aceder a www. portaldocidadao.pt e registar-se aí com a sua identificação electrónica alemã e começar a trabalhar com as Finanças portuguesas com o objectivo de montar o seu negócio. Da mesma forma, a portuguesa Laura poderá comunicar na página www.service-bw.de que se instalou na Alemanha e que a sua actual morada é tal e tal.

O Stork é co-financiado pelo Programa de Apoio à Política de Tecnologias de Informação e Comunicação da União Europeia (UE), no âmbito do Quadro de Competitividade e Inovação (CIP). Gonçalo Caseiro explicou ao PÚBLICO que “o total de investimento [no Stork] é de cerca de 26 milhões de euros, dos quais 50 por cento são co-financiados pela UE e os restantes 50 por cento pelos Estados-membros participantes”. “Portugal teve um investimento de cerca de 128 mil euros”, indicou ainda o mesmo responsável. O Stork é, no fundo, um add-on — um complemento — que permitirá aos cidadãos estrangeiros a viver noutro país fazerem com que a sua identificação electrónica no país de origem comunique com os serviços administrativos dos seus países de acolhimento.

A maneira de um cidadão aceder aos serviços depende de país para país. Umas vezes é preciso um cartão físico (como o Cartão de Cidadão), outras é preciso um leitor de cartões com chip e noutros casos é até preciso um telemóvel. Paralelamente, há diferentes níveis de segurança usados (numa escala que varia entre o 1 e o 4) nos diversos países. Atendendo a estas discrepâncias, Antonio Lioy considera que “aquilo que devíamos estar a fazer era a pensar numa harmonização dos requisitos mínimos de acesso aos serviços electrónicos nos diferentes países”. O mesmo responsável reconhece, aliás, que isso poderá acontecer num futuro próximo, tal como aconteceu, por exemplo, com as assinaturas electrónicas. No que toca à segurança dos seus dados, os cidadãos podem ficar descansados. “Não há dados pessoais a serem armazenados através do Stork”, esclarece Antonio Lioy.

E depois do adeus?

Outro dos projectos-piloto que constam desta iniciativa Stork é o Chat Seguro. O objectivo é pôr crianças e adolescentes europeus a falarem via chats online.

Devidamente orientados por professores, a iniciativa tem por missão promover o e-learning entre países, com a vantagem de que todos os participantes estarão registados através das suas identidades electrónicas, contribuindo para uma maior segurança. “Normalmente, quando falamos de identidade electrónica, só pensamos no nosso nome e na nossa identidade física. Mas, na verdade, a identidade é uma mistura de dados. No Chat Seguro, aquilo que importa não é realmente o nome da pessoa, mas antes a sua idade. É isso que realmente importa. Porque hoje em dia é muito comum as pessoas mentirem em relação à idade e isso potencia os casos de abusos online e pedofilia. Neste Chat Seguro, o acesso ao fórum de debate é controlado pelo Stork e portanto, através da identidade electrónica, é possível provar automaticamente se a pessoa tem mais ou menos de 18 anos, por exemplo. Se tiver mais, não entra no chat.”

O Stork termina em Maio de 2011. O projecto foi financiado pela Comissão e, segundo o vicepresidente Antonio Lioy, tem demonstrado algum sucesso. O problema está no que virá a seguir. Após o fim oficial do projecto, serão os países que aderiram ao Stork que terão de continuar a financiá-lo. Por causa da actual crise financeira e económica, o responsável admite que isto significa que alguns países venham a puxar a ficha e abandonem o Stork. “A União Europeia é composta por Estados independentes e pode acontecer haver países que digam — ‘Bom, dada a actual crise, não poderemos manter o programa a funcionar’, ao passo que haverá outros países que dirão: ‘Nós damos valor a este programa e vamos continuar a valorizá-lo’.”

Questionado pelo PÚBLICO acerca deste assunto, Gonçalo Caseiro, da AMA, afastou o cenário de abandono do projecto e indicou que “manter o Stork não custa absolutamente nada”. “O Stork é um complemento da arquitectura do Cartão de Cidadão. Não tem custos porque não foi criado um sistema à parte. Só foi criada uma camada por cima da arquitectura já existente.”

Notícia publicada originalmente na Pública, 07/11/2010
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