À sombra do ditador

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"Autobiography of Nicolae Ceausescu", de Andrei Ujica

Competição começa com "Autobiography of Nicolae Ceausescu", de Andrei Ujica

É muito complicado dar o pontapé de saída para uma selecção competitiva com um filme assim.

O "monumento" que é "Autobiography of Nicolae Ceausescu", do romeno Andrei Ujica, é o primeiro dos 12 filmes a concurso no Estoril Film Festival 2010 a ser exibido - e eleva a fasquia a um nível tal que muito dificilmente (mesmo que não seja impossível) será igualado. E que, decerto, não o é pelos outros três filmes a concurso este fim-de-semana.

Não é apenas uma questão da excelência do filme (já lá vamos). É também uma questão da companhia em que ele está. Nunca nenhuma selecção competitiva de um festival é extraordinária a cem por cento, mas nenhuma das selecções competitivas do Estoril deixou, até agora, grandes memórias, e a imagem que este primeiro fim-de-semana (com quatro dos 12 filmes) dá é de uma selecção difusa, dispersa, um pouco aleatória.

Um exemplo: percebemos a presença de "Dad", a primeira ficção do documentarista esloveno Vlado Skafar. É um filme falhado, um abstracto maneirista e atmosférico sobre um domingo no campo entre um pai divorciado e a sua filha, que resultaria melhor como uma curta ou uma média-metragem e cuja coda documental é uma excrescência supérflua. Mas é um filme onde há um ponto de vista, uma abordagem (poética, lírica), um olhar de cineasta atento com faro para a composição e para a organização (o modo como o filme flui, todo em cross-fades, é exemplar).

Mas não percebemos o que faz a concurso "Io Sono Tony Scott", documentário do italiano Franco Maresco sobre um clarinetista americano que trabalhou com Billie Holiday, Charlie Parker e Harry Belafonte antes de uma mudança para Itália o ter feito cair no esquecimento. Não se percebe, devido ao interesse do seu tema (restrito a conhecedores e estudiosos do jazz clássico) e à sua convencionalíssima abordagem ao documentário, de factura televisiva, alternando "cabeças falantes" e imagens de arquivo.

O facto de Maresco ter sido (com o seu ex-parceiro Daniele Cipri) um dos mais atentos observadores e satiristas da Itália contemporânea não salva "Io Sono Tony Scott" - reflexo honesto da paixão do cineasta pelo jazz - de ser um objecto algo empolado (até em termos de duração). E, sinceramente, tornar Scott numa espécie de mártir de uma Itália filisteia que não compreendeu o seu génio é uma tese algo rebuscada que o filme não sustenta de modo inteiramente convincente.

Francamente mais recomendável é "Reverse Motion", estreia do russo Andrei Stempkovski, thriller metafórico, formalista (é russo...) e estilizado, história de uma mãe, um filho dado como morto e um órfão ilegal que cruza máfias, guerras e imigrantes ilegais num todo intrigantemente montado em camadas.

Excelentemente fotografado por Zaur Bolotaev em tons dessaturados, o filme de Stempkovski tem defeitos de primeira obra (faria, aliás, uma entrada honrosa, por exemplo, na competição do IndieLisboa), mas tem também uma bem-vinda noção de construção formal e narrativa que justifica plenamente que esteja a concurso.

No entanto, mesmo "Reverse Motion" empalidece face ao monumento que Andrei Ujica monta a partir de imagens de arquivo minuciosamente pesquisadas nos arquivos estatais romenos. "Autobiography of Nicolae Ceausescu" é uma lição de cinema e uma lição de história, pegando nos filmes oficiais que acompanharam o "reinado" do líder comunista romeno entre a sua ascensão ao poder em 1965 e a sua queda em 1989, e usando-os como "reveladores" inadvertidos da realidade que supostamente escondiam.

É um trabalho de precisão que, espantosamente, nunca olha condescendentemente para Ceausescu, fazendo-nos antes compreender como um apparatchik tão medíocre podia chegar a chefe do Estado. Muito mais do que um mero exercício de aplicação prática da teoria, é um dos mais notáveis objectos de cinema que vimos em muito tempo.


Estoril Film Festival Competição


"Autobiography of Nicolae Ceausescu?", de Andrei Ujica. Centro de Congressos do Estoril, hoje às 12h00; repete sexta (12), às 18h00, no Casino Estoril.

"Dad", de Vlado Skafar. Casino Estoril, hoje às 17h00; repete segunda (8) às 15h00 no Centro de Congressos do Estoril.

"Reverse Motion", de Andrei Stempkovski. Casino Estoril, amanhã às 15h15; repete terça (9) às 17h00 no Centro de Congressos do Estoril.?

"Io Sono Tony Scott", de Franco Maresco. Centro de Congressos do Estoril, amanhã às 21h45; repete quarta (10) às 21h15 no Museu Paula Rego.

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