Kathryn Bigelow, uma mulher livre

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Um caso singular: uma mulher que filma universos masculinos (e tradicionalmente filmados por homens)

Retrospectiva integral de uma cineasta que sempre fez o que quis independentemente do que os outros quiseram. Jorge Mourinha

É um dos momentos mais fortes do Estoril 2010: a retrospectiva integral de Kathryn Bigelow, a realizadora americana que venceu este ano o "scar de Melhor Filme e Melhor Realizadora pelo magnífico "Estado de Guerra".
E é um dos momentos mais fortes porque é a primeira oportunidade que temos para poder reavaliar na íntegra uma das cineastas mais singulares das últimas décadas, e uma cineasta cujo percurso parece ter sido pensado propositadamente para confundir críticos e observadores.

Os primeiros encontros que tivemos com ela - o "western vampiro" "Depois do Anoitecer", o policial "Aço Azul" e a aventura "Ruptura Explosiva" - sugeriam uma arrumação na gaveta do género da série B que, com o tempo, se começou a perceber ser errado. Bigelow não é caso único - também, por exemplo, realizadores hoje reconhecidos como autores de corpo inteiro como David Cronenberg ou Joe Dante começaram por ser considerados tarefeiros de série B. Mas Bigelow é um caso singular, devido ao facto de ser uma mulher que filma universos tendencialmente masculinos (e tradicionalmente filmados por homens) e que o faz vinda de um universo - a arte moderna, onde estudou, por exemplo, com Lawrence Weiner, que estará também presente no festival, e a desconstrução e questionamento semióticos - que quase nunca mostra interesse na mecânica do cinema "popular".

Apesar de "Ruptura Explosiva", glorioso momento de adrenalina pura recoberto de uma patine existencialista a meio caminho entre Hawks e o homoerotismo (e seu sucesso comercial mais significativo), e "Estranhos Prazeres", presciente ficção científica imersiva em tom de profecia social, a realizadora esquivou-se sempre às gavetas em que Hollywood insiste em encerrar os realizadores. Demasiado conceptual para ser comercial, demasiado comercial para se sentir à vontade nas convenções do que se convencionou chamar cinema independente, Bigelow trabalha num limbo constante de quem não pertence realmente a lugar nenhum. E, de certo modo, é essa independência que lhe dá a sua grande mais-valia e a sua importância indesmentível, sobretudo num sistema de produção contemporâneo onde Hollywood se afadiga a limar arestas e conformar os projectos a cadernos de encargos específicas. Bigelow é uma mulher livre que não transige em nada e prefere fazer os seus filmes fora do circuito a ter de fazer concessões (é, aliás, por isso que nenhum dos seus oito filmes, em apenas trinta anos de carreira, foram financiados por um grande estúdio - e o único que o foi, "Estranhos Prazeres", foi produzido pelo ex-marido, James Cameron, que a protegeu de intervenções externas.).

É uma posição de peculiar e rara integridade numa carreira que se fez aos zigzagues lentos, como quem diz que não se vende nem por mais uma mas que nesse processo não larga nunca a exigência da acessibilidade. A cineasta não está interessada em ser panfletária nem propagandista ("Estado de Guerra" é um filme singularmente apolítico, o que causou significativa confusão nos observadores); nos seus filmes as coisas nunca são lineares, preto no branco, como Hollywood tanto gosta. Mas de certo modo é exactamente isso que faz da realizadora a raridade que é: alguém que não toma o seu público por parvo nem por garantido, para quem o acto de entreter uma audiência equivale a uma oportunidade única de emocionar o espectador sem deixar de exercitar a sua cabeça.
É isso que vamos poder compreender nesta integral de uma obra de rara consistência, pautada pela noção de que as divisões entre "cinema de autor" e "cinema comercial" estão mais na cabeça de quem vê do que de quem faz. E se os Oscares de "Estado de Guerra" não tiverem servido para mais nada, pelo menos serviram para olharmos como deve ser uma autora que merece maior atenção do que até agora estivemos dispostos a prestar.

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