Laurentino Gomes: O Brasil não será um país do primeiro mundo numa ou duas gerações

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Foto: Nuno Ferreira Santos

No dia em que mais de 130 milhões de eleitores vão às urnas, o jornalista que transformou a História do Brasil e de Portugal em best-seller diz que é falsa a ideia de que o seu país é um "gigante adormecido" que vai, a qualquer momento, "acordar e virar uma potência mundial". Em 1822, o segundo livro de uma trilogia, Laurentino Gomes explica também as razões "completamente diferentes" por que portugueses e brasileiros se interessam por uma história comum.

Laurentino Gomes é um fenómeno, uma espécie de Paulo Coelho dos livros de História. O seu primeiro livro, 1808, sobre a fuga da corte portuguesa para o Brasil, vendeu 600 mil exemplares num país onde a média é de 1800 por título. "Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar um país que tinha tudo para não resultar", assim começa 1822, o novo best-seller do jornalista que "chegou de fora sem pedir licença". A primeira tiragem brasileira esgotou em apenas três dias: 100 mil exemplares vendidos. O título 1822 chega agora a Portugal, através da Porto Editora. O fim da trilogia, 1889, vai ser escrito no Porto. Em 1822, Laurentino Gomes revela, para brasileiros e portugueses, um D. Pedro "meteoro que cruzou os céus da História, um imperador, um rei, que amou muito, se vingou muito, perdoou muito". Um rei que até depois de morto continua dividido entre os dois lados do Atlântico. "O seu coração está no Porto e os restos mortais no Ipiranga."

Vendeu 100 mil livros no Brasil em três dias. A que atribui este sucesso?

É inegável que o sucesso do primeiro livro [1808, que conta e analisa a ida da família real portuguesa para o Brasil] puxa o segundo. Mas há uma explicação mais profunda. Apesar desta aparente calmaria no Brasil, de uma campanha eleitoral que não empolga ninguém, de candidatos que são aparentemente muito parecidos, o Brasil está a passar por um momento de reflexão muito profunda e que não está no horário eleitoral gratuito [tempo de antena dos partidos na TV], não está nos palanques, não está nos partidos políticos. Está na Internet, na imprensa, nas organizações não governamentais, nas escolas e nos livros.

Acho que as pessoas estão lendo sobre História do Brasil em busca de explicações para o país de hoje. A minha impressão é a de que, depois do fim do regime militar e da redemocratização, nós alimentámos algumas ilusões a respeito do Brasil. De que o mero exercício da democracia nos levaria ao primeiro mundo, de que era muito fácil resolver os problemas do Brasil. Esta falsa ideia de que o Brasil é um gigante adormecido que, em algum momento, vai acordar e virar uma potência mundial.

A gente achava que uma eleição directa, a eleição de um Presidente populista como o Collor [Fernando Collor de Mello, o primeiro Presidente eleito pelo voto directo depois do regime militar], uma constituinte, um pacote económico, medidas provisórias iam resolver tudo. E as pessoas estão meio assustadas com a dificuldade que é levar o país adiante. Assustadas com a persistência da corrupção, da desigualdade social, da violência, da criminalidade, da ineficiência dos serviços públicos. E aí surge a pergunta inevitável: por que nós somos assim? Por que é tão difícil construir o Brasil? Há um ambiente de frustração no ar...

Não é à toa que pela primeira vez o número de jovens abaixo de 18 anos inscritos para votar caiu. Há uma campanha pelo voto nulo entre os jovens. Então, eu acho que entra a História com uma função muito importante que é responder a este tipo de pergunta. Ou seja, por que nós somos assim?

Olhar para o passado para entender o Brasil de hoje?

É. A História está sendo usada hoje de uma forma instrumental mesmo, o que é muito bom. A História serve exactamente para isso. Para iluminar o passado, explicar o país de hoje e preparar as pessoas para construir o futuro. Quem não conhece História não entende o Brasil de hoje. Qualquer sociedade, se não estuda a História, não se consegue entender a si mesma. Então, ao contrário do que parece, não é um interesse voyeurista por personagens e acontecimentos pitorescos do passado, por um rei que gostava de franguinhos, por uma rainha louca, por um príncipe mulherengo e boémio como D. Pedro. Não, é um interesse pelas raízes do Brasil. Mas numa linguagem mais acessível, numa forma às vezes divertida, de um jeito agradável de aprender e estudar. Acho que esta é a grande novidade.

Gosta muito de frisar que o seu trabalho é o de um jornalista.

O meu trabalho não é uma pesquisa académica convencional, eu faço livros-reportagem. Acho que este é o desafio permanente do jornalista: como atingir um público mais amplo sem banalizar o conteúdo, ou seja, como torná-lo relevante, atraente, sedutor, irresistível. Como tratar de reforma tributária [reforma fiscal] de uma forma que todo o mundo entenda; como tratar de astronomia de uma forma que as pessoas entendam. Como tratar da História do Brasil de uma forma que todo o mundo entenda. E mais que isso, que sinta prazer em estudar... Então, acho que consegui fazer um livro numa linguagem atraente, sedutora, didáctica. É por isso que eu uso estes elementos pitorescos na capa do livro. "Uma rainha louca, um príncipe medroso, um escocês louco por dinheiro", que são truques da técnica jornalística para capturar a atenção das pessoas. São iscos que eu jogo para o leitor. E o resultado tem sido realmente impressionante. As pessoas têm reagido de uma forma espectacular a esta fórmula, ela está dando certo.

Disse que o Brasil está a olhar para a sua História para poder encontrar o seu caminho. Quando olhou para esta História, para 1808 e para 1822, o que descobriu?

Passei a entender muito, mas muito melhor o Brasil de hoje. Tem umas coisas curiosas que eu fui observando. Primeiro que a História é alvo de manipulações, reinterpretações, construções posteriores que às vezes distorcem, e muito, a forma como a gente vê os personagens e os acontecimentos do passado. É por isso que a História não é uma ciência exacta. Os acontecimentos e os personagens estão congelados no passado, mas a História continua a mudar de acordo com a forma que as gerações posteriores enxergam este passado.

Esta História do Brasil é repleta de mitos, fantasias, distorções, que afectam a forma como nós interpretamos as nossas raízes. Por exemplo, o Grito do Ipiranga que é o quadro do Pedro Américo [que reproduz o momento do grito da independência por D. Pedro], que é uma construção já do final do período monárquico. O quadro do Pedro Américo foi apresentado ao D. Pedro II em 1888, um ano antes da proclamação da República, quando a monarquia já estava profundamente abalada pela luta republicana e precisava ganhar uma sobrevida.

D. Pedro II recorre ao Pedro Américo para reconstruir de uma forma épica um momento importante da monarquia que é o grito do Ipiranga. Mas não passa de uma alegoria. Primeiro, porque é uma cópia de um outro quadro que está no Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, do Ernest Meissonier, que é Napoleão em Friedland [1807, Friedland]. O Pedro Américo copiou aquele quadro. Há uma séria suspeita de plágio. Nada que está ali é real. D. Pedro aparece como um príncipe real bem vestido num cavalo alazão. Ele não estava assim. Ele estava mais como um tropeiro numa mula de carga, que era a forma correcta de subir a serra do mar, os dragões da independência [a guarda de honra do imperador] ainda não existiam, então eram tropeiros, fazendeiros, pessoas simples do Vale do Paraíba que haviam constituído a guarda de honra. Nem o riacho do Ipiranga deveria estar ali porque o grito aconteceu a 600 metros do riacho.

Uma coisa curiosa também é que a História explica a forma como o Brasil foi constituído. É preciso levar em conta que Portugal descobre o Brasil e assume uma pequenina metrópole, assume a responsabilidade de ocupar um território 93 vezes maior do que a sua extensão. Como é que Portugal faz isso? Recorrendo ao latifúndio com as capitanias hereditárias, a distribuição de sesmarias, com plantação extensiva de cana-de-açúcar, de algodão, tabaco e pecuária e a importação maciça de mão-de-obra escrava. Isso gera um passivo que nós carregamos até hoje, na forma de concentração de terra, de riquezas, de desigualdade social, de analfabetismo, de exclusão.

No seu livro, descreve um Brasil onde um em cada três habitantes era escravo, analfabeto...

Uma população pobre, analfabeta, carente de tudo. Completamente à margem de qualquer oportunidade neste final de período colonial brasileiro. Não há povo na independência do Brasil. Povo no sentido de uma entidade capaz de participar politicamente. O Brasil não tinha povo. O que tinha era uma massa muito carente. Aí chega um rei do exterior, fugindo de Napoleão, que é o príncipe regente D. João VI e começa esta construção do Estado brasileiro de cima para baixo. E esta tarefa continua depois com D. Pedro I, D. Pedro II, na república tem uma parte monárquica porque de novo é um ditador, é um general, é um caudilho como por exemplo o Getúlio Vargas [Presidente do Brasil duas vezes nas décadas de 1930 e 1950], que tenta organizar esta geleia geral que fica em baixo, herança do período colonial.

Esta dimensão de longo prazo explica o Brasil de hoje, construído de cima para baixo, fundado na concentração de riqueza. Muito diferente dos EUA, que em 1776 já tinham 90 por cento da população alfabetizada, porque era uma sociedade protestante que precisava alfabetizar os seus escravos para eles lerem a Bíblia em casa e nos cultos dominicais, já tinha sete principais universidades, Harvard...

A circulação de jornais no ano da independência americana era de 3 milhões de exemplares por ano. Um índice que o Brasil só atingiria muito mal no século XX. Era uma sociedade com senso de participação comunitária porque vinham da Inglaterra habituados à confrontação do poder do rei. É uma sociedade organizada, um povo constituído que constrói o Estado. De baixo para cima. O Brasil é exactamente o oposto. Raízes completamente diferentes.

E o que o surpreendeu nesta busca das raízes brasileiras?

Esta história desfocada alvo de manipulação ou de construção posterior.

Mas, como jornalista, não estava acostumado a deparar-se com isso?

Mas não imaginava que acontecesse neste grau e o tempo todo. O personagem símbolo disso que eu mostro é o próprio D. Pedro I [D. Pedro IV em Portugal], que durante o regime militar [1964-1985] é visto como o Tarcísio Meira [actor de telenovelas brasileiro], um herói épico, marcial, no filme Independência ou Morte, e depois, no Governo Lula, já é o Marcos Pasquim [também actor de novelas] na série Quintos dos Infernos, um sujeito mais mulherengo, boémio. Porquê? Porque a nova visão costuma desconstruir a anterior. Então é uma reinterpretação da História.

Não há meio termo?

Não. O que um jornalista pode fazer para se proteger destas manipulações é uma pesquisa muito profunda. Tentar fazer um julgamento mais equilibrado, observar a dimensão humana dos personagens. Descobrir que eles não são nem sujeitos completamente incapazes como é retratado o D. João VI no filme da Carla Camurati, nem heróis marciais, heróis de estátua de bronze e pedra em praça pública. São pessoas em carne e osso com defeitos, com virtudes, com coragem, com medo, com angústias. E que são capturados neste rio caudaloso que são as circunstâncias e os acasos da História. Esta é outra descoberta. A constatação de que a História do Brasil e de Portugal não se dá numa relação bidimensional.

Estes dois países são profundamente afectados por uma transformação que ocorre na História da humanidade neste final de século XVIII, início do século XIX. Este é um dos momentos mais revolucionários da História humana. Tem a independência americana, que cria a primeira república democrática da História moderna, inverte a pirâmide do poder. Antes, todo o poder emanava do rei, agora todo o poder emana do povo.

É um momento de transformação profunda na tecnologia, com a revolução industrial na Inglaterra, que cria uma escala de produção nunca vista. E os ingleses precisavam vender estes produtos. Defendem o liberalismo económico, a liberdade de comércio independente de fronteiras nacionais. Tem uma mudança tremenda no coração da Europa: a revolução francesa e as guerras napoleónicas. Então, este ambiente em grande convulsão transforma à força Portugal e Brasil. Uma coisa que eu mostro no livro é que a independência do Brasil resulta menos de um desejo de autonomia dos brasileiros (aliás, esta tese é do historiador Sérgio Buarque de Holanda, eu apenas a divulgo) do que de uma guerra civil entre os portugueses.

É de uma crise na metrópole que resulta a independência do Brasil. Eu digo, nas entrevistas que estou a dar aqui em Portugal, que Portugal cria o Brasil de forma completa. Descobre, coloniza, transforma o Brasil com a chegada da corte e proclama independência por uma crise na metrópole, uma guerra civil entre portugueses.

Como é o seu método de pesquisa? A sua mulher [e agente literária, a jornalista Carmen Gomes] disse que você leu 170 livros.

Sim, uns 100 livros para o 1808 e mais 70 específicos para o 1822. Uma bibliografia leva à outra. O 1822 é consequência óbvia e natural do 1808. Ao estudar a corte no Brasil, você está estudando a preparação do ambiente para a independência. Eu faço reportagem. Além de consultar livros, documentos, teses de mestrado, de doutorado (nem sempre você precisa de ler um livro inteiro, às vezes é um capítulo), também vou ao local onde as coisas aconteceram, o que é muito precioso. É um trabalho de reportagem ir a Salvador hoje para ver a festa do 2 de Julho, que é a data da expulsão dos portugueses da capital da Bahia em 1823. Uma festa fantástica sem paralelo com nenhuma festa cívica no Brasil.

É uma forma de observar como brasileiros e portugueses olham para o seu passado. Se valorizam, se preservam, se não preservam. Eu acho que tem um trabalho jornalístico de depurar, de descodificar as informações, fazer comparações. Quanto custou a festa de casamento do D. Pedro I com a Leopoldina em Viena em 1817? Lá citam uma cifra enorme em florins ou francos que não faz o menor sentido, mas se eu disser que, naquela época, um par de sandálias em Viena custava X, eu posso dividir um pelo outro e dizer que dava para calçar toda a população da cidade do Porto. Então é uma forma de tornar estes dados às vezes bastante etéreos e subjectivos em algo mais perceptível, comparável para o leitor de hoje, de aproximar a História... Dizer como está o riacho do Ipiranga hoje, que é um riacho poluído, enquadrado, cimentado, engolido pela metrópole de São Paulo.

E, além de ir aos lugares, consulta historiadores?

Converso, mas não como jornalista, como estamos conversando agora. Entrevistar uma fonte e transcrever o que ela diz. A diferença é que os personagens estão todos mortos, mas eu ainda consigo ouvi-los através de cartas, depoimentos, crónicas, memórias que eles escreveram, documentos oficiais e assim por diante. O que eu tenho é um trabalho de orientação. Um jornalista não pode ser um franco-atirador, sair escrevendo sobre qualquer assunto sem ter a orientação adequada. E, aqui, eu uso como orientador o embaixador Alberto da Costa e Silva, que é um grande historiador, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras. Ele foi lendo, anotando, corrigindo, dando sugestões nos capítulos à medida que eu os fui escrevendo.

Mas faz a pesquisa sozinho?

Eu trabalho tudo sozinho. Porque quando você contrata um pesquisador e dá uma tarefa, por exemplo, vai lá e me traz um perfil do José Bonifácio de Andrade e Silva, ele traz. Um perfil certinho, previsível geralmente. Mas às vezes ele não pega aquela pepita de ouro que está escondida dentro de um parágrafo de um livro: a informação de que José Bonifácio, que embora tenha passado para a História com esta imagem circunspecta, sisuda do patriarca da independência, era um sujeito boémio, bom de copo, mulherengo, muito divertido, piadista, passava as madrugadas dançando lundu em cima da mesa. Usava um rabicho no cabelo que ele escondia debaixo da casaca nas cerimónias oficiais. Esta é uma visão nova de um personagem que você só descobre pesquisando sozinho.

E dá-lhe imenso prazer estas pequenas descobertas, as tais pepitas de ouro?

(Solta uma gargalhada e lança um olhar cúmplice para a mulher.) Ela é minha testemunha. Gosto mesmo é de ler e pesquisar. Escrever é mera consequência. Não só eu tenho o prazer desta revelação do personagem como às vezes me emociono muito. Por exemplo... a troca de cartas entre o D. Pedro I e a marquesa de Santos ou entre o D. Pedro I e o jovem D. Pedro II, filho que ele deixa no Brasil quando volta para Portugal. É emocionante, eu me emocionei, sou pai de quatro filhos, eu chorei na hora em que li aquelas cartas. Acho que este envolvimento do repórter com os personagens também ajuda a dar uma dimensão humana para a obra.

Antes de escrever o livro, já dizia que D. Pedro I foi um meteoro que cruzou os céus da História...

O que me fascina no D. Pedro I são as suas contradições. Primeiro é um homem de discurso liberal, ele era admirador de Napoleão Bonaparte, o homem que tinha obrigado o pai a fugir de Portugal, que ele considerava o maior herói do século. Mas ele tinha uma prática autoritária do poder. Por exemplo, em 1822, ele concorda com as reivindicações das províncias, das lideranças, da maçonaria de ser o imperador constitucional do Brasil, ou seja, de assumir o trono com seus poderes limitados por uma Constituição. Em Novembro de 1823, quando a Constituição não se curva aos seus desejos, ele dissolve a constituinte e, no ano seguinte, ele outorga uma Constituição surpreendentemente liberal, mas é um acto de um monarca absoluto.

A outra contradição é que por trás desta carapaça de homem autoritário e aventureiro, temerário, que fazia grandes cavalgadas, teve inúmeras quedas de cavalo, quebrava as costelas e tal, havia um ser humano extremamente frágil. Não só do ponto de vista físico, ele era epiléptico, desabava em público a qualquer momento, mas também do ponto de vista psicológico.

O D. Pedro é um homem muito carente. Eu não sou psicólogo, mas suspeito de que ele teve uma família muito fragmentada. O pai e a mãe não moravam juntos, brigavam o tempo todo. No Rio de Janeiro, criado meio à solta, entre os escravos, os serviçais muito desqualificados, como o Chalaça. Isto faz com que o D. Pedro cresça com uma carência afectiva excessiva. Então ele ama de forma desmedida muitas mulheres. Não fazia diferença entre escravas, damas da corte, mulheres casadas, dançarinas, namorou até uma freira no Convento da Esperança nos Açores. Ele detesta ser contrariado. Toda a vez que ele é contrariado, reage de forma autoritária, que é uma coisa de protecção contra a rejeição. Isso me encanta no D. Pedro.

É um jovem príncipe de 22 anos que o pai deixa no Brasil com a responsabilidade de cuidar de um território enorme. Um ano antes do grito do Ipiranga, ele escreve uma carta maravilhosa ao pai, D. João VI, que é assim: "Pai, por tudo o que é de mais sagrado que há neste mundo, me dispensa deste emprego que ainda há-de me matar." Olha que coisa incrível! Ou seja, ele está assustadíssimo com o que está acontecendo, com as pressões de portugueses, brasileiros, federalistas, republicanos, monarquistas mas ele é um homem muito ambicioso, logo se encanta com a ideia de ser o primeiro imperador do Brasil. Faz o grito da independência, mas paga um altíssimo preço pelas suas contradições. E perde rapidamente esta aura de herói do grito do Ipiranga.

Pelos escândalos da vida pessoal, o envolvimento com a marquesa de Santos, pelo eterno conflito entre brasileiros e portugueses, ele fica o tempo todo com um pé de cada lado do Atlântico. Aliás, continua assim depois de morto, o coração está no Porto e os restos mortais no Ipiranga, e esta contradição entre a índole autoritária e este discurso liberal, isso corrói a autoridade dele e a popularidade no Brasil. Ele é praticamente expulso do Rio de Janeiro no dia 7 de Abril de 1831.

Aqui, no Rossio ou no Porto...

... é como se fosse o pai ou o avô dele. Você sabe que a iconografia dele é muito parecida com a de D. Pedro I de Portugal, o da Inês de Castro: um homem barbudo, envelhecido de cabelo longo.

Os brasileiros lêem o livro para entender o Brasil de hoje, e os portugueses que já leram 1808 e vão ler o 1822 estão em busca de quê?

O que tem em comum o sucesso do livro no Brasil e em Portugal é a linguagem. Esta história saborosa que dá para ler na praia ou na beira da piscina. Mas as razões pelas quais portugueses e brasileiros se interessam por esta história são completamente diferentes. Os brasileiros comemoraram os 200 anos da chegada dos portugueses no Brasil. Os portugueses não. Com a fuga da corte, Portugal sofreu muito. Deixou de ser um império colonial porque perdeu o Brasil independente, que era a única coisa que interessava ao império colonial (entrepostos de comércio e tráfico negreiro).

Até por uma defesa psicológica, os portugueses estudavam muito pouco o que tinha acontecido no Rio de Janeiro nestes 13 anos. Estudavam as invasões napoleónicas e pulavam para a revolução liberal do Porto, as cortes constituintes, a guerra entre os liberais e os miguelistas. Quando na verdade é Portugal que está no Rio de Janeiro não é o Brasil, é a corte portuguesa que está lá tomando as decisões na colónia.

O meu livro ajuda a iluminar este período, mostrar primeiro que não foi tão desastroso assim. É uma atitude heróica dos portugueses. Eles pegarem em armas contra Napoleão, numa guerra de guerrilhas, apoiados pelos ingleses e tal. Não é apenas sofrimento e frustração, existe um heroísmo neste momento português. Os brasileiros não, os brasileiros estão observando esta história para entender esta grande transformação que se dá no Brasil que leva à independência.

No caso do 1822, é a mesma coisa. Os brasileiros sempre olharam os portugueses como o outro. É uma certa satanização dos portugueses na independência, como se as cortes constituintes tivessem o tempo todo conspirando contra os interesses brasileiros. Há um certo maniqueísmo nesta história. Sabe-se muito pouco o que está acontecendo em Portugal. Ninguém sabe exactamente o que eram as cortes constituintes, por que elas eram convocadas, por que elas eram liberais? Por que elas exigem a volta do D. Pedro? O que foi a revolução liberal do Porto? E depois ninguém sabe o que aconteceu com D. Pedro depois de abdicar do trono brasileiro. É como se ele se tivesse evaporado no ar.

Por outro lado, os portugueses sabem muito pouco sobre este rei português, D. Pedro IV, quando ele estava no Rio de Janeiro. Sabem pouco sobre o grito do Ipiranga. Sabem pouco sobre a constituinte, a guerra da independência. Então, eu acho que é o jeito de olhar esta história agora, ajustar o conhecimento desta história, o que é maravilhoso para as relações entre Brasil e Portugal. É inestimável ajustar as expectativas do conhecimento da História. Perceber que são histórias comuns. O Brasil e Portugal continuam ligados de forma umbilical mesmo depois da independência. Se você pensar que D. Pedro outorgou a Constituição no Brasil em 1824, e esta mesma Constituição foi outorgada em Portugal em 1826, depois da morte de D. Pedro... Eu vi este documento no museu imperial de Petrópolis. É a mesma Constituição - onde está Império do Brasil ele riscou e pôs Reino de Portugal. É a mesma Constituição que governa os dois países de 1826 para frente. É que não dá para entender a História brasileira da independência sem observar Portugal e vice-versa. E é interessante porque isso se expressa na iconografia. O D. Pedro IV de Portugal é como se fosse um outro rei. Ele é mais velho. Os portugueses sabem muito pouco sobre este jovem príncipe quase imberbe, aventureiro, destemido, meio inconsequente, boémio, mulherengo.

Porque aqui ele já havia casado com a princesa. Aqui, ele já estava com a imperatriz Amélia. (A imperatriz Leopoldina morrera, aos 29 anos, no Rio de Janeiro, e o caso escandaloso com a marquesa dos Santos acabara.)

Aqui ele já era um homem mais centrado. Não é mais tão aventureiro. Aliás, tem uma carta curiosa que ele escreve ao marquês de Resende, um amigo dele, em que se queixa do desempenho sexual, que já não era aquelas coisas.

Na falta das aventuras, ele assume um grande senso de responsabilidade histórica. Ele vem para Portugal para defender os interesses da filha, dos liberais, para colocar a filha no trono. É um rei guerreiro. Ele se revela no cerco do Porto um chefe militar muito carismático que passava as noites na trincheira debaixo de neve com os seus soldados. E vira o jogo de uma guerra que ele tinha tudo para perder. Desembarca no Porto com sete mil soldados para enfrentar o D. Miguel, que tinha 80 mil.

Graças à sua capacidade de liderança mas também por uma mudança do ambiente internacional (os ingleses que eram primeiro favoráveis ao D. Miguel acabam aderindo aos liberais, a França também), ele ganha a guerra e morre muito cedo. Ele, o herói do grito do Ipiranga, se converte em vilão muito rapidamente no Brasil, mas o herói do cerco do Porto também se converte em vilão muito rapidamente, aqui, em Portugal.

Ele ganha a guerra contra o D. Miguel mas, em vez de retaliar e se vingar, ele perdoa, ele dá amnistia, permite que o irmão parta para o exílio. E aí tem aquela cena dramática no Teatro São Luiz em que ele entra, a população está vaiando, joga moedinhas dizendo que ele tinha sido comprado e ele tira um lenço branco, começa a tossir e há um jorro de sangue vermelho e ele morre logo depois. É uma coisa de teatro, de ópera italiana. Os brasileiros não sabem nada disso de D. Pedro. Como os portugueses não sabiam nada do D. Pedro das margens do Ipiranga.

E qual destes D. Pedro lhe fascina mais?

Ah, os dois... Este personagem é de uma força enorme. Ele é um furacão ou meteoro que passa pela História de Portugal e do Brasil, que vai transformando tudo de roldão de forma intempestiva, sem pensar muito, tomando decisões muito rápidas, amando muito, odiando muito, se vingando muito, amnistiando, perdoando, ele é um grande agente de transformação. Ao contrário do pai, o pai que também é um agente de transformação, mas diferente. D. João transforma pelo adiamento, pela indecisão, pela postergação. É um ser sossegado, sedentário. O D. Pedro é intempestivo, temerário, ele chega à beira da irresponsabilidade na forma como age, é o oposto do pai, mas transforma os dois países tanto quanto o pai.

E sobre estes outros personagens - a imperatriz que morre aos 29 anos humilhada e que lutou tanto pela independência, o lorde escocês e o José Bonifácio, o patriarca...?

D. Pedro está no centro do palco. Mas o José Bonifácio me fascina. É uma pessoa muito mais interessante do que eu imaginava. Ele não é o patriarca apenas. Aliás, eu faço uma comparação com o Thomas Jefferson, eu não digo isso no livro mas posso dizer aqui: o único problema do José Bonifácio foi ter nascido no Brasil. Se ele fosse americano, seria um dos grandes personagens da História mundial. Ele era bem preparado, mais culto, mais interessante do que o Jefferson, que era um advogado chato, monótono. O Bonifácio era muito mais divertido.

A sua descrição do José Bonifácio resgata um lado completamente desconhecido do patriarca da independência...

(Laurentino Gomes parece divagar sozinho ao lembrar o personagem.) Um grande mineralogista. Divertido. Antiesclavagista. Tinha uma agenda de Brasil que faria sentido no Brasil de hoje. Era a favor da educação para todos, abolição da escravatura e integração dos escravos na sociedade produtiva, a favor da reforma agrária, defesa do meio ambiente, plantio de árvores, incentivo à indústria, à agricultura e transferência da capital do Rio de Janeiro para uma cidade próxima do planalto central. Ou seja, ele tinha uma agenda muito avançada e é o grande artífice da independência.

Este Brasil que emerge independente das margens do Ipiranga tem a cara e a assinatura do José Bonifácio. É a fórmula dele. O José Bonifácio percebe que neste país grande, diverso, com tantos escravos, pobres, tanta divergência regional, só a monarquia constitucional sob a liderança do imperador conseguiria manter a integridade territorial, caso contrário o Brasil se fragmentaria como aconteceu na América espanhola, na hipótese de a independência vir pela via republicana.

Mas o Brasil paga um preço alto por esta integridade territorial. Adia decisões importantes que poderiam ter sido tomadas em 1822, como, por exemplo, a abolição da escravatura, ou a reforma agrária ou então uma distribuição de poder por uma via federalista, ou até a implantação de uma república. (Até para tentar distribuir um pouco mais a participação em decisões nacionais.) Mas o preço neste caso seria a fragmentação do território. Então é o inverso: o Brasil opta por manter a integridade territorial e adia outras decisões que só vão acontecer muito mais tarde, depois da proclamação da república.

E que o Brasil paga até hoje?

Sim, que a gente paga até hoje. É um passivo a ser zerado.

Carmen Gomes contou que a sua meta no 1808 no Brasil era vender 20 mil exemplares. Já vendeu 600 mil. E agora com 1822?

(Laurentino dá uma gargalhada e olha com ternura para Carmen.) Sou um mau planejador. Quando disse a um editor muito experiente, amigo meu, que ia escrever o 1808, ele riu e disse: "Laurentino muda de assunto, ninguém quer saber de D. João VI." Eu pensei que ia conseguir vender 20 mil, que era muito num país em que um título vende em média entre 1500 e 2000 exemplares. Vendeu 600 mil. Agora, sem correr o risco de ser pretensioso ou ambicioso, no mínimo queria chegar a esta meta. Mas se eu vender 100 mil (a primeira tiragem no Brasil já esgotada) já é muito livro.

E como tem sido a recepção de historiadores e professores de História, aqui e no Brasil?

No começo, com uma certa apreensão o que é natural. A história académica tem um processo interno de validação. Tem tese de conclusão de curso de graduação, depois tem mestrado, depois tem doutorado, depois tem pós-doutorado. Aí, chega um jornalista de fora sem pedir licença e faz um livro que vende milhares de exemplares. Acho que isso gera um certo desconforto entre os especialistas. Mas acho que isso passou logo que eles perceberam que o meu objectivo não é banalizar a História, não é escrever um livro oportunista para ganhar dinheiro apenas, tem uma contribuição ao ensino da História, a ampliação do conhecimento. É um trabalho de divulgação científica.

Não misturo ficção com não ficção. Respeito as fontes autorizadas. Bebo na fonte dos historiadores. O meu livro foi muito bem avaliado por historiadores que eu respeito muito em resenhas na Folha de São Paulo, no Estado de São Paulo, na Veja. Claro que, às vezes, tem uma reacção corporativista, mas é anónima, nas sombras de blogues - no outro dia, tinha um blogue que dizia: "Jornalistas, deixem a História para historiadores." Mas são blogues anónimos. Então eu vejo que é uma coisa que não tem importância e não me assusta. Converter o conhecimento académico num livro de linguagem acessível para atingir um público mais amplo, isso é uma novidade no Brasil.

Agora, há o fim da trilogia a caminho? 1889?

Sim eu quero fazer só mais um livro com o número na capa, que é 1889. São três datas ícones da construção do Estado brasileiro no século XIX: 1808, chegada da corte, que transforma esta colónia até então atrasada, analfabeta, isolada; 1822, independência, consequência da primeira data, e 1889, que é uma grande ruptura no processo político, acaba a monarquia, uma monarquia exótica na América e começa a república, o que gera consequências muito sérias no Brasil de hoje. Porque se você observar os outros países eles têm pais da pátria. Têm Simón Bolívar, tem Bernardo O" Higgens, José de San Martín ou então Thomas Jefferson, George Washington.

No Brasil, na proclamação da república, o novo regime para se legitimar procura desqualificar a história anterior, a história monárquica, então todos os heróis da monarquia são desconstruídos. E a república começa a construção de heróis novos. Tiradentes, que passou um século incógnito porque era um mártir da monarquia, por exemplo. A república começa uma construção bem sucedida de um herói da democracia, da independência.

O resultado é que o Brasil fica um país meio sem pai nem mãe. Nós não temos os pais da pátria. E isso tem uma consequência muito grande na forma como nós avaliamos o passado. Acho que até este problema de auto-estima que o Brasil vive hoje tem a ver com esta ruptura no processo político. No meu próximo livro, vou procurar explicar o que foi isso, o que foi o segundo reinado, e a proclamação da república.

É verdade que resolveu escrever 1889 no Porto?

(Grande gargalhada, ao olhar para a mulher Carmen.) A Carmen está tornando este projecto uma realidade. É um sonho nosso. O Porto é uma paixão pessoal nossa. A gente gosta muito da cidade, é uma afinidade. O facto de estes livros terem vendido muito me transformou, mesmo à revelia, numa celebridade literária. Tem sempre uma demanda muito grande para dar entrevista, participar de eventos e tal. Percebo que para pesquisar e escrever em paz eu preciso me retirar de cena. No ano passado, a gente decidiu não aceitar nenhum compromisso eu me retirei em Itu [interior de São Paulo], onde a gente mora. E não atendia ninguém. E daqui para frente pensamos em fazer isso fora do Brasil. Quero, no 1889, pesquisar profundamente no Brasil, reunir uma biblioteca, mas vir morar no Porto talvez por seis meses para escrever.

De onde vem esta paixão pelo Porto?

1822 me fez redescobrir o Porto. É uma cidade com uma alma liberal. É uma cidade invicta, é uma cidade que resistiu a Napoleão, resistiu a D. Miguel. Tem ali um clima muito forte no ar.

Depois de olhar para as raízes que explicam o Brasil de hoje, o que acha da situação do país neste momento?

A grande novidade é o exercício continuado da prática democrática por tanto tempo. Aí você vai falar, por quanto tempo? Apenas 25 anos em cinco séculos de História. Mas, ainda assim, é muito tempo. Nunca houve antes um período tão continuado de democracia no Brasil. A democracia é um negócio complicado porque é um pacto colectivo. Você tem que negociar interesses de muita gente, de grupos, de 190 milhões de pessoas, então é um processo muito lento de construção, de frustração, de erros, de acertos, ora isso faz com que as pessoas fiquem às vezes chocadas com a dificuldade.

É o que a gente falou no início da entrevista: demora, a gente tem que escolher o Presidente da República, tirar do poder, se arrepender, pregar voto nulo e chegar à conclusão que isso é uma besteira porque em democracia você precisa optar, por piores que sejam as escolhas. Mas quando é que o brasileiro vai se convencer de que a democracia é a melhor alternativa? Na hora em que ele começar a colher os frutos desta participação colectiva. E os frutos estão vindo. Nós temos alguns frutos inegáveis: a austeridade monetária e fiscal, coisa que não existia; a diminuição drástica do analfabetismo e melhoria na escolaridade. Melhor distribuição de renda, de oportunidades, mais empregos, mais investimentos, mais participação, um combate efectivo à corrupção. Isso não é mérito do Governo do Lula nem do Fernando Henrique. É o país inteiro que está mudando.

Tenho a impressão de que o Brasil começa a colher os primeiros frutos concretos da participação democrática na construção do país. Aí sim, apesar do passado, um passado de desigualdade, um passado de muita exclusão, de conflito latente, um conflito que foi camuflado, porque este poder para se legitimar tinha que vender a imagem do pacificador, do pai que organiza e distribui tudo, impede briga entre os irmãos. O Brasil tem um futuro muito bom, o presente é muito transformador, desta forma benéfica que é a pratica democrática.

O que a gente precisa fazer é calibrar as expectativas em relação ao Brasil, que não vai virar um país de primeiro mundo daqui a uma ou duas gerações. Vai demorar muito, porque você primeiro transforma um país pela educação, mas depois tem algo mais complicado que é a cultura, que é ter relações éticas no Estado, mas também individuais. É não jogar lixo na rua, é não dar propina [suborno] para o guarda que lhe multou depois de virar a curva proibida, é respeitar as pessoas, é respeitar o pedestre na faixa de segurança, aí é cultura, aí é um trabalho de muitos anos, mas como eu seu aquariano, eu sou optimista, acho que vai dar certo.

(A entrevista termina, mas, quando estamos a desligar o gravador, Laurentino Gomes volta a falar em José Bonifácio)

Sabe uma outra coisa que me encanta no José Bonifácio? Eu começo o capítulo falando nisso: ele era um homem tão experiente, tinha visto tudo, tinha sido professor em Coimbra, pegou em armas contra o Napoleão, grande mineralogista, ele achava que já tinha feito tudo na vida. Então ele começa a pedir autorização ao rei para morrer em paz... no Brasil. Este homem mal imaginava que o grande papel na História ainda estava para acontecer. E isso é maravilhoso, é um sinal de esperança para todos nós.

Não pode jogar a toalha não. Não pode desistir da vida. As coisas, as oportunidades estão aí. Não pode se acomodar não. Ninguém sabe as oportunidades que o futuro reserva, não é?

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