Jam Chopin

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Um pianista de jazz (Mário Laginha) um pianista clássico (António Rosado) e uma paixão: Chopin

No próximo Festival Chopin - São Luiz, Lisboa, a partir do dia 16 - António Rosado toca as peças originais e Mário Laginha dará a conhecer os seus arranjos sobre a música do compositor polaco. Para ambos, Chopin é uma paixão e um dos maiores improvisadores de sempre

Como é que um pianista de jazz e um pianista clássico vêem a música de Chopin? Mário Laginha e António Rosado, os dois convidados em destaque no Festival Chopin promovido pela Orquestra Metropolitana e pelo Teatro Municipal São Luiz que se inicia dia 16, têm em comum uma grande paixão pela obra do compositor polaco, mas abordam-na necessariamente de maneira diferente. Entre o rigor da partitura e o contributo das suas magníficas melodias e harmonias como fonte de inspiração na criação de novos universos sonoros há um mundo de possibilidades e muitas pontes de sentido. E não será uma heresia abordar Chopin em versão jazzística e improvisar sobre a sua música?

"De modo algum, pois também Chopin foi um grande improvisador", diz Mário Laginha. António Rosado, pianista de formação clássica, não costuma improvisar a partir das partituras, mas refere que estas reflectem de forma evidente essa vertente. "Quando Chopin apresenta o mesmo tema há sempre algo que muda e a forma como usa a ornamentação resulta numa espécie de improvisação escrita."

Entre 16 e 19 de Junho será possível ouvir no São Luiz as peças originais de Chopin por um pianista consagrado como António Rosado e por quatro jovens pianistas finalistas do Concurso Chopin lançado em Março pela Metropolitana, versões orquestrais das peças pianísticas realizadas por outros compositores, mas também uma série de arranjos criados por Mário Laginha para o seu Trio (formado pelo pianista, pelo contrabaixista Bernardo Moreira e pelo baterista Alexandre Frazão). E no final haverá uma "Jam Chopin", durante a qual todos os músicos (profissionais e amadores) presentes serão livres para se sentarem ao piano e tocar as suas composições preferidas.

O grande improvisador

"Nos últimos 100 anos apareceu um estilo, o jazz, que tem quase como matriz o improviso. De certa forma tem graça homenagear o grande improvisador que foi Chopin, improvisando agora com outra linguagem a partir da música dele", diz Laginha. "Agora associa-se a ideia da improvisação só ao jazz mas nem sempre foi assim. Às vezes digo por brincadeira que o jazz tomou posse do conceito por mérito próprio, mas por desmérito da outra área. É possível improvisar dentro de outros paradigmas. Bach, Beethoven, Chopin eram grandes improvisadores. Mas o ensino nos conservatórios deixou de incentivar a improvisação", acrescenta.

Também António Rosado considera que seria "interessante e benéfico" incluir a prática da improvisação no ensino. "Permitiria uma grande abertura de espírito e elasticidade para depois abordar mais à vontade o repertório escrito."

Para António Rosado a primeira recordação de Chopin está ligada à interpretação dos Estudos, já que estes fazem parte do programa do curso de piano e de vários concursos. "Recordo-me também de ter tocado muito Chopin num momento importante da minha vida musical, os Cursos do Estoril, onde viria a encontrar o meu professor [Aldo Ciccolini]", conta. "É um compositor que tenho abordado com frequência mas finalmente tenho a oportunidade de apresentar um programa só com as Baladas e os Scherzos. É um velho desafio, quase uma paixão. Sempre achei interessante esta combinação pois são dois grupos diferentes de obras que se equivalem em muitos aspectos."

No caso de Laginha, a primeira memória de Chopin remonta à infância. "Tinha começado a estudar piano e os meus pais achavam que eu e o meu irmão devíamos assistir ao Concurso Vianna da Motta. Foi aí que comecei a sentir o fascínio pela hipótese de abordar a mesma peça de várias maneiras. Quando mais tarde comecei a estudar clássico, toquei várias obras de Chopin. Ficou-me a memória um universo melódico e harmónico fascinante." Agora, perante o desafio lançado pelo maestro Cesário Costa, que na qualidade de maestro e presidente da Metropolitana concebeu o projecto de mostrar Chopin de forma mais imaginativa, e pelo então director do São Luiz, Jorge Salavisa, foi esse universo que lhe veio à memória. "Pegamos num Scherzo e não há lá um tema, há muitos, em Chopin a música sai a jorros. Não podia pegar naquilo tudo, por isso, por vezes escolhi apenas um tema ou dois em cada peça", explica Laginha. Nas peças que seleccionou como ponto de partida tentou passar um pouco por todos os géneros, incluindo a Balada op. 23, o Estudo op. 10 nº6, os Nocturnos op. 15, nº1, op. 48, nº1, o Prelúdio em Dó menor op. 28, nº20, o Scherzo op. 31 nº2, a Valsa op. 34 nº2 e a Fantasia op. 49.

"Achei que seria uma verdadeira homenagem se agarrasse na música de Chopin em vez de fazer novas composições em torno desta ideia. Não compus música, mas fiz arranjos e tomei muitas liberdades", refere o pianista. "Abordei com enorme respeito a música de Chopin, mas não com deferência. Tentei tomar posse da sua linguagem e haverá também espaços para improvisar."

O grande objectivo para Laginha é que "as pessoas se libertem e não pensem que deviam era estar a ouvir o Chopin genuíno." Diz que não conhece nenhum outro projecto do género em torno de Chopin, ao contrário do que acontece com Bach, objecto de imensas versões jazzísticas.

"É estranho pois algumas obras de Chopin prestam-se bem a este tratamento ou a realizar coisas do tipo das que se fazem no jazz mais 'mainstream', quando se vai buscar as músicas da Broadway ou de grandes compositores americanos como [Cole] Porter ou [George] Gershwin."

Entre os pianistas que Laginha mais aprecia em Chopin encontram-se Maurizio Pollini (principalmente por causa dos Estudos) e Sviatoslav Richter, já que não gosta do "lirismo excessivo" que por vezes se cola à música do compositor. Rosado concorda que os Estudos de Pollini foram um marco e diz que, apesar das diferenças, gosta muito de Rubinstein e Horowitz. Recorda também Samson François e a forte impressão causada pela descoberta da gravação da integral dos Nocturnos por Ciccolini.

Juntamente com o maestro Cesário Costa, António Rosado foi responsável pela selecção dos finalistas do Concurso Chopin associado ao Festival. Os 14 candidatos têm o seu trabalho divulgado no site da Metropolitana através da disponibilização de vídeos com as suas interpretações e os quatro finalistas (Marta Menezes, Tomohiro Hatta, Paulo Oliveira e Raul Peixoto da Costa) têm direito a 500 euros em dinheiro, cada um, e à possibilidade de se apresentarem em recital no São Luiz (de 16 a 18, sempre às 18h30). Ao vencedor terá o privilégio de tocar em Setembro no 29.º Festival Internacional "Chopin nas Noites Outono", na cidade de Kalisz, a 275 Km de Varsóvia.

"Fiquei muito satisfeito com esta iniciativa porque sei que há poucas oportunidades para os jovens em Portugal", conta Rosado, sublinhando que o nível é muito bom.

Na sua opinião, as maiores dificuldades na interpretação de Chopin são a "subtileza harmónica", pois é difícil "colorir de uma forma justa e acertada", e fazer cantar o piano. "É curioso que Chopin se sirva tão bem de um instrumento que está nos antípodas do canto, já que é um dos instrumentos mais mecânicos que podemos imaginar. Sugerir todo esse cantar, todas essas melodias fabulosas usando um instrumento de cordas percutidas é um exercício difícil."

Tanto Laginha como Rosado admiram a vertente inovadora do pianismo de Chopin. "Se conseguimos identificar um compositor através da audição de um único compasso, então é porque foi novo em qualquer coisa", diz Laginha. "É ainda mais surpreendente se pensarmos que Chopin não estava sozinho no mundo com o piano", acrescenta Rosado. "Uma coisa é estar quase sozinho, outra é ser contemporâneo de Liszt, de Schumann e até de Mendelsshon."

"Há pessoas que pensam que estudei piano clássico e depois me decidi pelo jazz, mas não foi assim. Isso é difícil e raramente funciona", confessa Laginha. "Inscrevi-me no conservatório para melhorar a técnica, mas a cultura musical ocidental é tão fascinante e imensa que não pude deixar de me sentir atraído por ela. No entanto, sei que não é possível conciliar as duas coisas ao mais alto nível. De resto, não conheço quem faça bem as duas coisas. Friedrich Gulda a tocar jazz era de fugir. Acho que o melhor ainda é o Keith Jarrett, mas se quando toca a música dele é grandioso, na clássica é apenas mais um." E como é a relação de António Rosado com o jazz? "Pacífica!" [risos]. "Tenho prazer em ouvir mas não toco. Gostava, mas reconheço que ou não tenho talento suficiente ou que precisaria de aprender e praticar imenso."

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