Gil Scott-Heron num lugar sempre novo

Foto
Um ancião com à vontade para abrir o concerto com piadas sobre o quase impronunciável vulcão Eyjafjallajökull Fernando Veludo/nFactos

Gil Scott-Heron
Sala 2, Casa da Música, Porto
Sábado, 15 de Maio
Sala cheia
4 estrelas

“Não seria engraçado se eu, de facto, desaparecesse? Era chato para vocês porque não tocava as minhas canções, mas quantas vezes podem ver alguém a desaparecer?”, atirou Gil Scott-Heron do palco para quem foi à Casa da Música testemunhar o regresso de uma figura tutelar da música negra nascida na América. Scott-Heron quase desapareceu – esteve 16 anos longe dos discos, foi preso por posse de droga, lutou contra a dependência –, mas voltou e com um fulgor criativo que a maioria dos veteranos regressados aos discos não exibe.

I’m new here, o aclamado novo álbum de Scott-Heron editado em Fevereiro último, foi o pretexto para o concerto (há outro hoje, na Aula Magna, em Lisboa), mas o músico preferiu mergulhou mais fundo na sua discografia. Deteve-se, em particular, na década de 1970, altura dos primeiros discos, que fizeram dele um dos pioneiros do hip-hop (brincou com o facto de excertos das suas canções terem sido usados por Tupac Shakur, Kanye West e Common) e das contaminações entre a soul, jazz e a spoken word (Gil é também poeta). Gil, que tocou um piano Rhodes durante quase todo o concerto, surgiu com velhos cúmplices - Glenn Turner em teclados e harmónica e Tony Duncanson na percussão.

Com o passar dos anos, a voz de Scott-Heron ganhou um grão que não existia nesses maravilhosos discos fundadores, uma espessura que o transformou de brilhante jovem com empenho cívico em ancião sábio – um ancião com à vontade suficiente para abrir o concerto com piadas sobre o quase impronunciável vulcão islandês Eyjafjallajökull e para se definir como um “bluesologista”, um “cientista dos blues”.

Percebe-se o que Gil Scott-Heron quis dizer com “ser um ‘bluesologista’”. Descarnada, sem as flautas, baterias e baixos plenos de groove dos primeiros discos, ressaltou a forma como enrola palavras sobre padrões repetitivos (como na notável recuperação de The other side, doloroso retrato do vício – “you keep saying, kick it, quit it, kick it, quit it/God, but did you ever try/to turn your sick soul inside out”). É também obra de mestre a nova densidade blues que emprestou a I'll take care of you, de Bobby Bland.

Did you hear what they said? surgiu mais austera do que em Free Will, álbum de 1972. Winter in America, do disco homónimo, de 1974, perdeu a aura jazz funk e tornou-se um notável lamento só com Gil, entre o registo contador de histórias e o de crooner, e o Rhodes. Não houve The revolution will not be televised, mítico poema-canção-slogan das artes de protesto, mas houve outro hino, The bottle, outra de Winter in America, com apelos à celebração e show de percussão de Duncanson pelo meio – Gil fitava-o, em pé, com admiração fixada no rosto enrugado.

Durante pouco mais de uma hora, Scott-Heron mostrou que a sua música, a velha e a nova, é tão vital hoje como há 40 anos. Coisa rara, exclusiva dos grandes.

Sugerir correcção
Comentar