Jorge Cruz: a música como manifesto

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Jorge, o Diabo na Cruz, de peito aberto: Acho que a história vai estar ao lado daqueles que fazem música em português Vera Marmelo

Nos Superego, Jorge Cruz escreveu um manifesto pelo português no rock. Em 2010, quando os seus Diabo Na Cruz lotam auditórios país fora, continua-lhe fiel. Fala dos Gaiteiros, Vitorino ou Buraka Som Sistema para explicar o país - ainda assim, homem de fascínios, prosta-se perante Ian Brown, Bob Dylan ou...George Michael

Em 2001, os aveirenses Superego editaram "A Lenda da Irresponsabilidade do Poeta". Como denunciava o texto nele inscrito, pretendia-se manifesto pelo português na coisa rock que levou meio mundo (o outro meio não quis saber) a cair em cima de Jorge Cruz, o autor da prosa. Nos anos 1990, Cruz olhava em volta e, como aponta agora, os Ornatos Violeta eram os únicos a fazer algo com que se identificasse. A proverbial discussão da língua? Sim, é disso que falamos ao falar com Jorge Cruz. Mas não é apenas uma questão de língua. Por exemplo, adorava (a adora) Sérgio Godinho, mas "não queria fazer música muito elaborada e que respeitasse a métrica como ele faz": "eu fazia rock, logo, esse não era o meu papel".

Nos Superego, entre brumas "grunge" e tom confessional, passou ao lado da história. Agora, banda aveirense encerrada em 2001, Jorge já não se sente sozinho. Tem os Diabo na Cruz, autores de "Virou!", álbum onde o rock'n'roll descobre personagens e danças cá da terra, e anda a mostrá-lo país fora em concertos de lotação esgotada. O típico "É Português? Não Gosto", imortalizado em EP dos Stealing Orchestra, é hoje letra morta, e Jorge Cruz, olhando para o hoje em que existe o pessoal da Flor Caveira e da Amor Fúria, onde existem os Real Combo Lisbonense e os Aquaparque, Sam The Kid ou Buraka Som Sistema, lança um sorriso: "Assumo que já há doze anos dizia as mesmas coisas e assumo que daqui a doze anos faremos contas. Acho que a história vai estar do lado daqueles que fazem música em português".

De peito aberto

Enquanto descobrimos que no percurso de Cruz "George Michael é a razão para tudo", enquanto ele nos diz que Vitorino é a nossa figura mais pop e que "devíamos estar todos a ver os Gaiteiros [de Lisboa] em festivais e a dançá-los aos saltos"; enquanto viajamos com ele ao sabor dos discos, aquela convicção é remissão constante. Uma questão de temperamento: "Fiquei historicamente associado a uma luta antes do tempo. Mandei umas bocas, escrevi sobre isso e caiu-me tudo em cima. Não pus o rabinho entre as pernas, fiz o que tinha a fazer, continuei o meu trabalho. Mas agora vou levar isto até ao fim". Palavra de Jorge Cruz.

A estética é-lhe importante, mas ele é tão transportado por ela como pela ideia de percurso. Exemplo: achamos que "Tão lindo", a segunda canção de "Virou!", tem algo do funk robótico dos Rapture e mostramos-lhe "Get myself into it". Pega nela para chegar a Ian Brown: "Basicamente, isto faz-me lembrar 'Madchester'. Nunca fui muito Happy Mondays, mas os Stone Roses são uma banda muito importante para mim". Adorava aquele psicadelismo e aquele wah wahs da guitarras. E admira Ian Brown, incondicionalmente: "Respeito-o imenso. Não canta uma merda, mas interessa-me ele apontar para a frente e seguir, ter o seu caminho a percorrer. É isso que um gajo tem que fazer. De peito aberto".

Cada canção que lhe mostramos é menos a canção e a banda, mais aquilo que Jorge Cruz vê para além delas.

Começámos a sessão com a "Blackbird" dos Beatles, que julgáramos tê-lo ouvido cantar em 2000, no Ritz Clube, quando assinava como Pequeno Aquiles. A memória atraiçoou-nos (não fora "Blackbird", antes "Martha my dear"), mas Jorge Cruz vai-se afastando dessa memória - foi com os Beatles em fundo que nos falou dos Ornatos Violeta. E é quando o reconduzimos aos Beatles ("Revolver" é o seu álbum preferido, de "Sgt Peppers" não é grande fã), que nos conta algo que, de certa forma, ajuda a defini-lo. "Tenho um 'post-it' colado no 'White Album' com a minha selecção de canções, de forma a torná-lo álbum simples em vez de duplo". Ou seja, Cruz é, perdoe-nos a expressão cámone, um "geekzinho" da música. Saberão quando escreveu as primeiras canções? Ali em meados dos anos 1980, quando foi viver com os pais para Angola e se viu impossibilitado de continuar a acompanhar um fascínio recente, "o universo da pop e dos telediscos, de Boy George, Madonna, Michael Jackson e George Michael" - o cantor de "Faith", de resto, era quase "uma droga": "o 'Different corner' ou o 'Careless whisper' tem aquele lado lamechas que batia mesmo quando tinha oito anos".

Portanto, em Angola, o Cruz criança não tinha telediscos em top televisivo. Que fazer? Esperar pelo carregamento de revistas que a avó enviava e dar música às canções que não conhecia, títulos de Waterboys ou Bryan Adams que ganhavam "refrões num inglês muito mal inventado".

Não por acaso, descobrimos aquela veia precoce ao som de "Yah!", dos Buraka Som Sistema, que define como uma "ideia super feliz". "Vêm da cultura hip hop e conseguem apoderar-se de um ritmo a que temos acesso mais rápido que o resto do mundo, num momento em que a M.I.A. e outros mostram haver sede pop por um lado mais étnico". Mais uma vez, sobressai o cavalo de batalha: "Enquanto nós, os portugueses filhos de Silvas e Sousas, andámos a fazer música cantada em inglês durante uma porrada de anos, o hip hop continuou a ser o único discurso urbano cantado em português. Discurso válido e fortíssimo."

Em Jorge Cruz sobressai uma vontade de discutir Portugal através de canção. Nele, a música, omnipresente desde as primeiras memórias - "a minha primeira infância, no pós-PREC, foi passada em concertos com os meus pais" -, está constantemente a cruzar-se com a reflexão sobre o país. Dêem-lhe "Tropicália" e ele diz que se identifica com Caetano Veloso "porque ele pretende abraçar tudo, sem excluir nada". "Curtia o Roberto Carlos e o Jorge Ben e estava apaixonado pelo [Jimi] Hendrix e pelos Beatles". Isto para concluir, recentrando o discurso, que "não é através de uma selecção do que achamos que deve ser a música portuguesa que vamos lá". E então, enquanto Caetano glorifica a "mata" ("ta-ta") e a "mulata" ("ta-ta ta-ta"), Jorge Cruz questiona porque não tem José Afonso - "o grande génio, o pai disto tudo" - nada que o assinale em Aveiro, a cidade onde nasceu (e onde nasceu Jorge Cruz). Pergunta para responder: "Porque Aveiro é uma cidade de direita. No Seixal, por ser uma zona associada à esquerda, há ruas José Afonso". Fala de um país que passou da ditadura para a democracia com medo da catarse, cita José Gil e arranca uma analogia: "acontece uma coisa má na família, fazemos de conta que não aconteceu nada e seguimos em frente - o país é isso". Não pára ali: Apesar de "estarmos lentamente a tornar-nos gente" - "por darwinismo", precisa -, Portugal tem "medo de si próprio".

O pop que temos

Ouve-se a harmonia de "Semear salsa ao reguinho", tema título do primeiro álbum de Vitorino. Jorge Cruz, que escolheu o cantor alentejano como primeira voz de "Virou!", não perde tempo a exclamar: "Vitorino? É o maior!" Prossegue: "É um classicista, um homem que aprecia o bel canto e que corta o pão alentejano com canivete quando vamos almoçar. Um homem do Portugal rural e, ao mesmo tempo, da boémia lisboeta. Veste um colete e veste a música dele como um colete. Há nele algo de profundamente genuíno e de altamente teatralizado que o torna um pop. Nós não reconhecemos o pop que temos, mas isto é que é o nosso pop, estas é que são as nossas figuras".

Claro que nem tudo é esmiuçado daquela forma. Nem tudo é som que remete ou explica o país. Jorge Cruz foi um miúdo de 13 anos que só ouvia Jesus & Mary Chain, Cure e Smiths (soubemo-lo quando arriscámos passar "Just like honey"). É alguém que, ao som de "After the goldrush", de Neil Young, salta até Will Oldham ("uma obsessão de há dez anos") para chegar a Bob Dylan e a o "Time Out Of Mind", o disco que mais ouviu na vida. Ou seja, claro que Jorge Cruz é um melómano capaz de deslumbramento. De se fixar naquela canção e se deixar maravilhar.

Quando chegamos aos Gaiteiros, à "Nem fraco nem forte" do álbum "Sátiro", são mesmo os Gaiteiros: "Pá, são a melhor banda portuguesa dos últimos não sei quantos anos. A música portuguesa devia ser isto. Trazem alegria e celebração, defendem muito bem que a música portuguesa não é aquela coisa triste e sombria a que as pessoas a associam". Oferecemos-lhe "My propeller", dos Arctic Monkeys, e ele não se contém: "Ele [o vocalista Alex Turner] tem uma sofisticação na escrita e um domínio das estruturas [das canções] que te surpreende. Faz-me lembrar o Elvis Costello do 'This Year's Model'". E, quase no fim, rodamos "Remar Remar" e ele conta-nos uma história: "Há uns tempos passei o dia todo a jogar ao 'isto e aquilo' com o [Tiago] Guillul. Um jogo de escolhas, do tipo 'Ramones ou Clash?' E eu, em bandas de rock português, entre GNR, Heróis do Mar, UHF ou Xutos, escolho sempre Xutos. São um enorme exemplo de como não é a estética que faz as canções. 'Vida malvada', 'Não sou o único' ou 'Remar remar' são hinos. Concentram uma energia, uma raiva, uma representatividade das pessoas simples em Portugal. Isso é uma grande qualidade."

Jorge Cruz é um melómano que respeita os seus fascínios. Há dois anos, actuando na "Consoada Flor Caveira" no Maxime, tocou uma longa canção com ares Dylanescos. A trupe toda em cima do palco e nós a perceber que a melodia do refrão era a de "Careless Whisper". Cruz não iria esquecer o cantor que, quando ele tinha oito anos, foi "a origem de tudo".

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