The Knife: no principio era a ópera

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Os suecos The Knife, um dos projectos mais marcantes da pop, ocompuseram uma ópera baseada em "A Origem das Espécies" de Darwin. O resultado é uma intrigante e fascinante electro-ópera: "Tomorrow, In A Year."

No princípio, uma conhecida companhia de teatro dinamarquesa, Hotel Pro Forma, convidou-os para comporem uma ópera inspirada na vida e obra de Charles Darwin, a estrear em 2009, assinalando os 150 anos de "A Origem das Espécies". O convite foi endereçado no início de 2008. Os irmãos suecos The Knife hesitaram. Nunca tinham escrito um libreto. A ópera era um universo distante. Karin Dreijer Andersson, irmã mais velha, já havia iniciado o processo criativo em torno do projecto solitário Fever Ray, revelado o ano passado através de um álbum, e Olof Dreijer, o benjamim, andava ocupado. Mas depois de alguma reflexão, aceitaram. Para os ajudar convidaram o músico e cantor inglês Planningtorock e o americano Mt. Sims. Mais tarde, juntou-se-lhes a mezzo soprano Kristina Wahlin Momme, a actriz dinamarquesa Laerke Bo Winther e o cantor pop sueco Jonathan Johansson.

A ópera acabou por estrear em Setembro, em Copenhaga, estando agora em circulação. O CD-duplo contendo a música acabou de ser lançado, suscitando as reacções mais desencontradas, naturais sempre que um objecto artístico é isolado da totalidade para o qual foi imaginado.

O grito e o sonho

Os The Knife são uma das unidades criativas mais fascinantes do nosso tempo. Desde 1999 lançaram apenas três álbuns ("The Knife", em 2001, "Deep Cuts", em 2003 e "Silent Shout", em 2006), tendo sido o último aquele que lhes angariou culto. Percebe-se porquê. É um disco admirável, feito de uma música tão sugestiva fisicamente quanto capaz de invocar estranhas projecções mentais. Canções feitas a partir de vozes desfiguradas, electrónica metalizada e ambientes neuróticos. Um som sintético, mutante, pós-tecno e pós-pop.

Mas são mais do que um projecto musical, sendo muitas vezes comparados a Bjork na forma de operar. Percebem-se os paralelismos. Como a islandesa, também a dupla se envolve nos processos criativos onde a sua música é sugerida: fotos, capas, vídeos, concertos ou internet.
Como nos dizia, em 2006, Olof Dreijer: "Não damos muita importância à imagem, mas a partir do momento em que sabemos que vão querer utilizá-la, preferimos ser nós a pensar nela. Preferimos que comunique qualquer relação com a música."

Daí as fotos com máscaras. Os vídeos, muitos deles concebidos pelo artista visual Andreas Nilsson, com criaturas belas e bizarras, ou os raros concertos, de cenários envolventes. Nos espectáculos ao vivo há sombras, clarões, seres estranhos projectados em telas, gráficos ininteligíveis que parecem ter sido retirados de um laboratório científico, algo de profundamente misterioso, mescla de realidade quotidiana elevada ao excesso e matéria da ordem dos sonhos.

O ano passado, em entrevista, aquando do lançamento do projecto Fever Ray, a loira Karin Dreijer dizia-nos algo de muito expressivo a este propósito: "Os sonhos são sempre mais reais, no sentido de serem reveladores, do que a realidade. Nos sonhos não existe espaço para a censura. Ou para a auto-censura. A música, parece-me, pode ter esse poder também. Isto é, pode ser qualquer coisa que ilumina algo que não tínhamos consciência que estava lá, mas estava."

Alguma da melhor música popular é feita a partir do grito. No caso dos The Knife é como se fôssemos transportados para um sonho, onde existe um desejo de gritar, mas nada sai. É um universo de não ditos, de algo familiar e estranho, em simultâneo, aquele que não se cansam de propor, utilizando música, símbolos e imagens como mais ninguém.

Uma orquestra endoidecida

Daqui até à ópera, o espectáculo total, parece um passo normal. Até porque, no seu caso, tudo se interliga. Na maior parte dos casos, partem de ideias pré-definidas. Neste caso, o motivo inicial era "A Origem das Espécies", livro publicado em 1859. Pelo meio interrogaram ideias (origem, tempo, verdade, realidade) que não são novas neles. Algumas elucidadas, o ano passado, por Karin. Dizia-nos: "Gosto de trabalhar por aproximações e sempre que me apetece alterando a ideia inicial. Não vejo dualidades na minha música. Vejo coisas que se interligam. Como a ideia de tempo. O passado, o presente e uma ideia possível de futuro não têm que se contrapor. Pelo contrário, confundem-se. O mesmo com as ideias de verdade e realidade. Quando me pinto, ou ponho uma máscara, posso ser mais verdadeira do que sem ela."

"Tomorrow, In A Year" reflecte também estas concepções, apesar do ponto de chegada ser diferente. Há temas que evocam o passado recente dos The Knife, mas na maior parte do tempo ouvimos música concreta, em particular sons da natureza, e um tipo de sonoridade que Olof já descreveu como o resultado de "uma orquestra clássica a tocar como se tivesse endoidecido." Qualquer coisa como um encontro entre música de vanguarda dos anos 40 e 50 com ruídos electrónicos de 2010.

A primeira metade da obra é mais impenetrável, com sons sobrepostos por ambientes coloridos que vão sendo distorcidos por vozes e ecos da natureza - em "Variations of birds" ouvimos diferentes estágios de sons de pássaros.

A segunda metade é mais calorosa, incluindo canções como "Annie's box", sobre a relação de Darwin com a filha, ou "Colouring of pigeons", no meio de divagações sobre biologia. 

Um dos pontos de partida para o trabalho foram gravações de campo efectuadas por Olof, numa viagem, em Novembro de 2008, pelo Amazonas. Um mergulho na selva, munido de gravador e microfone, absorvendo a biodiversidade da natureza, da qual resultam sons de pedras, chuva, vento ou de animais. 

No princípio fartaram-se de ler também. "Lemos as mais variadas coisas sobre Charles Darwin, desde livros, artigos, literatura de outros sobre ele, ou notas do próprio", descrevia Olof à publicação inglesa "Fact". "Foi muito excitante, começámos por fazer pequenos exercícios musicais a partir das teorias que íamos lendo. Era como traduzir, directamente, a teoria para a música. Na verdade, todas as escolhas musicais estiveram relacionadas com as suas teorias."

O libreto tinha que reflectir uma linguagem vitoriana de 1800 e daí que Ms. Sims, com aptidões poéticas mais clássicas, tenha sido convocado, contrapondo ao lado mais abstracto e contemporâneo de Karin, reflectindo diferentes estilos líricos. Uma mistura procurada em todos os planos da produção, de forma a que música e palavras reflectissem mudança, diversidade, ligados de forma não hierarquizada.

Alguns textos resultam de listas e descrições científicas. Aparentemente poderia existir alguma dificuldade em interpretá-los. Poderia até não existir uma aproximação emocional. "No início isso sucedeu", já confessou Karin, "mas depois de semanas a soletrar as palavras, aquelas frases e descrições, é como se elas começassem a criar emoção por si próprias. Charles Darwin trabalhou com ciência, mas escrevia de forma bela, às vezes até muito romântica. Tinha uma forma muito atraente de descrever aquilo que via."

No final do projecto, o duo diz ter ficado a admirar Darwin. Uma das dimensões que mais os surpreendeu foi a naturalidade com que foi capaz de modificar e acrescentar elementos à obra "A Origem das Espécies", que teve seis edições, a última publicada 13 anos depois do original. "Na ciência, como na arte, continuam a subsistir ideias românticas sobre o que é criar", diz Karin, "como se existissem pessoas que fossem possuídas por inspiração divina. Darwin é o contrário disso. Leu, pesquisou, criou e foi readaptando o seu conhecimento."

Talvez inspirados por isso, os suecos colocaram o álbum no seu site para ser ouvido, remisturado, reinterpretado ou transformado por quem quiser, desde que numa base não-comercial. No princípio, "Tomorrow, In A Wear" era uma ópera do grupo de teatro Hotel Pro Forma. Depois tornou-se num álbum dos suecos The Knife. Agora pode ser o que quisermos.

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