No casulo de Jimi Hendrix

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"Jimi Hendrix não tomou mais drogas do que Keith Richards ou John Lennon", disse ao Ípsilon John McDermott

O álbum póstumo "Valleys of Neptune" é um retrato de Jimi Hendrix na intimidade. Em 1966, aterrara em Londres um perfeito desconhecido. Em 1969, o ano que o disco cobre, atingira o topo em Nova Iorque. E procurava um próximo passo que, tragicamente, nunca chegou a dar.

Quando Jimi Hendrix aterrou em Londres em 1966, tinha a seu lado Chas Chandler, o antigo baixista dos Animals que lhe prometera uma carreira em Inglaterra. Era um perfeito desconhecido, mas isso duraria pouco tempo. Ainda antes de gravar o seu primeiro single, "Hey Joe", já um rumor percorria a "Swinging London". A de que o mais extraordinário guitarrista chegara à cidade e que vê-lo ao vivo era uma experiência transformadora. Transformou, pelo menos, Eric Clapton e Pete Townshend, distintos heróis da guitarra na capital inglesa - tornou-se imortal a exclamação do guitarrista dos The Who depois de ver Hendrix pela primeira vez: "Estamos acabados!" Tal era o impacto do homem que, meros meses antes, lutava para pagar as contas do mês como músico acompanhante dos Isley Brothers, Little Richard ou Ike & Tina Turner.

Em Londres, não tardou a causar impacto: "Hey Joe" e "Purple haze", os singles, a fazerem-se ouvir por todo o lado, e "Are You Experienced?", o álbum, a revelar um músico que, como nenhum outro, transportou o blues para a era psicadélica. Ali, em Inglaterra, era impossível ignorá-lo: não era só a feitiçaria eléctrica da música, era também a sua imagem, de uma exuberância em contraste com a lendária timidez que exibia na intimidade. Nos Estados Unidos, o seu país, foi necessário esperar um pouco mais. Porém, quando a ele regressou, não poderia pedir melhor cenário.

Junho de 1967, pré-época do chamado "Verão do Amor". Na Califórnia, em Monterey, organizou-se o primeiro festival pop de alcance global. Estavam lá muitos dos grandes: os Byrds e os Buffalo Springfield, os Mamas & The Papas e Simon & Garfunkel, os The Who na sua primeira grande apresentação americana. E, claro, um tal Jimi Hendrix que, de entre os presentes, poucos para além de Otis Redding e os Booker T & MGs, antigos companheiros de Jimi no circuito r&b, conheceriam. Coube às olheiras de Brian Jones, dos Rolling Stones, a apresentação. Coisa simples: "Senhoras e senhoras, The Jimi Hendrix Experience!" O que se seguiu foi tudo menos simples.

Começou com uma versão de "Killing floor" que dilacerou e atirou para a estratosfera o original de Howling Wolf. Apresentou "Purple haze" e "Hey Joe". Homenageou Bob Dylan com uma reverente "Like a rolling stone" e, no final, não deixou espaço para nada mais do que a prostração perante a ferocidade do seu talento. A "Wild thing" que ali se ouviu não se limitou a amplificar o tom ameaçador do original dos Troggs: numa vertigem de feedbacks e riffs ensurdecedores, com Mitch Mitchell a atacar a bateria como furacão destruindo tudo o que se lhe atravessou pelo caminho, Jimi Hendrix não deixou pedra sobre pedra. Literalmente incendiário, o final da canção, com ele ajoelhado frente à guitarra, fita no cabelo desgrenhado, camisa amarela saindo do colete, a lançar-lhe fogo e a sacrificá-la, projectando-a ao chão, em chamas, repetidamente. É até hoje uma das imagens mais fortes da iconografia rock'n'roll.

Nascera uma estrela. "Voltar aos Estados Unidos e ser bem-sucedido como americano significava muito para ele", diz John McDermott, antigo jornalista cuja obra inclui quatro livros dedicados a Hendrix e desde há alguns anos um dos responsáveis, juntamente com Janie Hendrix, meia irmão do guitarrista, pela obra do autor de "Foxy lady". McDermott continua a falar-nos do Monterey Pop Festival: "Era como que uma validação do seu talento voltar a casa e mostrar a todos que podia ser aquilo que sempre quisera: um músico por direito próprio, não um mero acompanhante." Falamos com McDermott não pelo que aconteceu ali, mas pelo que aconteceu depois.

Entre o estúdio e o clube

"Valleys Of Neptune", colecção de canções gravadas em 1969 que será lançada na próxima segunda-feira como álbum póstumo de Jimi Hendrix, é a razão pela qual falamos com John McDermott. Em "Hendrix: Setting The Record Straight", biografia que editou em 1992, o percurso do músico é acompanhado semana a semana, dia a dia. Em "Valleys Of Neptune", o álbum agora editado, acompanhamos Hendrix no seu casulo, em 1969.
Desde Monterey, editara "Axis: Bold As Love" e o álbum duplo "Electric Ladyland". Os dois discos, com canções como "If six was nine", "Crosstown traffic" ou "Voodoo chile", a par das digressões constantes, transformaram-no numa estrela de dimensão planetária. Radicado em Nova Iorque, construíra os Electric Lady Studios, o seu refúgio do estrelato, o laboratório onde pretendia desenvolver as suas cada vez maiores ambições. "Valleys Of Neptune", apesar de conter um par de canções gravadas em Londres, representa o esquisso de algo que nunca chegou a ser.

Hendrix nunca gravaria um sucessor para "Electric Ladyland". Morreria em Londres, a 18 de Setembro de 1970, aos 27 anos. Combinação letal: álcool a mais e comprimidos a mais. Combinação perfeita para a mitificação: desde então, a imagem que se retém de Hendrix é de alguém que representou como poucos os excessos da sua época.

McDermott recusa-a por completo: "Tenho a certeza de que não tomou mais drogas do que Keith Richards, John Lennon ou qualquer outro artista daquela era. O seu comportamento de risco resultou por acidente na sua morte, e essa é a verdadeira tragédia".

Ao estudar o percurso de Hendrix, John McDermott não viu qualquer aceleração final para o abismo, não encontrou um Jimi vivendo os últimos meses como um acidente à espera de acontecer. Pelo contrário. Se havia excesso, era na forma como fazia tanto com tão pouco tempo: "A noção de que tudo aquilo [o sucesso] podia acabar estava muito presente. Se nem o rock'n'roll era tido como garantido, o sucesso de Jimi muito menos. Por isso a mentalidade, particularmente a do seu manager, era a de aceitar todo e qualquer concerto, onde quer que se realizasse: 'Não há problema, apanha um avião!' Nunca houve planos a longo prazo".

Hendrix, que aprendera com as desventuras financeiras dos bluesmen que tanto admirava, era detentor da sua própria obra - algo quase inédito à altura - e com o dinheiro que ela lhe dera a ganhar construíra em Greenwich Village os Electric Lady Studios. Ainda assim, como conta McDermott, "teve de lutar [com o manager] por um acordo que lhe permitisse gravar durante a semana e dar concertos ao fim de semana - algo impensável nos dias de hoje para um artista da sua dimensão".

Eis então Hendrix em 1969, nos Electric Lady Studios. A gravar infatigavelmente, regravando e remisturando e tentando integrar novos músicos, do baixista Billy Cox, o amigo de infância que substituíra Noel Redding, membro fundador dos Experience, aos músicos que encontrava no The Scene, o clube instalado numa cave, a dois passos dos estúdios, de que era habitué, passando por gente que lhe cobrava favores de há anos ou pelo taxista simpático que, a meio da viagem, lhe confessava ter algum jeito para as congas. "Quando foste pobre, quando lutaste tanto durante a vida, é difícil não estender a mão aos amigos", relembra McDermott. "Dois anos antes, Jimi era um músico sem direito a holofotes.

Era considerado um guitarrista excêntrico cujo amor pelo blues parecia antiquado perante a popularidade do r&b. Um gajo porreiro para contratar, nunca um 'frontman'. Quando chegou o sucesso, aproveitou para fazer a sua volta de honra: 'Olhem para mim agora!' E tinha muita gratidão a pagar: pessoas que lhe tinham emprestado cinco dólares, uma guitarra ou um sofá para dormir". Durante a gravação de "Electric Ladyland", todos eles tinham entrada garantida nos estúdios. Depois, tudo se tornou demasiado.

As groupies, os penetras, as sessões de gravações transformadas em festas intermináveis. "Pediu ao Eddie Kramer [engenheiro de som] que assumisse o papel de 'gajo mau'. Era ele que mantinha o controlo da situação, que tirava as pessoas do caminho". Com ajuda preciosa: à entrada dos estúdios, foi instalada uma campainha e uma câmara para denunciar entradas indesejáveis. No casulo de Hendrix, passou a entrar apenas quem ele desejava.

Entre uma viagem até Inglaterra para um concerto no Royal Albert Hall, no Inverno, e a entrada para a história em Woodstock, com a interpretação de uma "Star Spangled Banner" corroída pelos ecos da guerra no Vietname, a rotina de Hendrix fazia-se no circuito delimitado pelo estúdio e pelo The Scene. "Levava lá o Billy Cox, que tinha ido buscar a Nashville, e viam bandas tão diversas como os Doors ou os Sha Na Na, viam bluesmen, viam o Jeff Beck e 'jamavam' noite fora".

O perfeito desconhecido que, meros três anos antes, aterrara em Londres com Chas Chandler, atingira o topo do planeta. Vivia entre dois mundos: o mundo antigo dos blues em que se formara e o mundo novo da contracultura que representava, dos sonhos sci-fi que tanto admirava e que traduzira em música. Desfeita a sua banda original, mudado de Londres para Nova Iorque, o homem que nunca se separava da guitarra tocava e tocava. Procurava qualquer coisa.

"Valleys of Neptune", onde se agrupam novas canções como "Lullaby for the summer", velhas regravadas, como "Stone free", e 'jams' para olear os improvisos ao vivo, caso da versão de "Sunshine of your love", é um retrato de Jimi Hendrix na intimidade, sem invenções de produção, despido à energia básica de baixo, bateria e guitarra.

Um compasso de espera em busca de um próximo passo que, tragicamente, nunca chegaria a dar.

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