Se isto continua assim, vou ali e já não venho

Em A Bela e o Paparazzo Nuno Markl grita a independência do seu prédio. Se isto continua assim é o que eu vou fazer...

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1. Numa sequência de A Bela e o Paparazzo, a personagem de Soraia Chaves (uma actriz de telenovelas, farta da sua vida, dos fotógrafos) quebra a ficção que está a gravar gritando que ninguém acredita naqueles diálogos, que é tudo mentira. Porque é que Soraia não interrompeu as filmagens de A Bela e o Paparazzo, para gritar que ninguém acredita naqueles diálogos, que é tudo mentira?

2. António-Pedro Vasconcelos: o número anterior é um desabafo, não uma falta de respeito. Foi assim que falei comigo mesmo enquanto via o filme. Lembrando-me de uma noite na TV portuguesa em que defendeu Godard e Je Vous Salue Marie ("uma pequena obra-prima", disse, naquela noite dos anos 80 em que o então presidente da Câmara de Lisboa, Kruz Abecassis, tentava impedir a exibição do filme na Cinemateca). Mas lembrando-me também de uma noite, agora há duas semanas, na TV portuguesa em que sentenciou que ninguém no mundo sabe o que é e quem é o cinema português. E depois de ter lido a sua entrevista a este suplemento, em que defende que o mainstream do cinema português tem que ser imposto; que precisamos de um Clint Eastwood; que O Pátio das Cantigas é o seu filme português preferido.
Começo por esclarecer: eu e Godard é uma relação que tem dias. E por estes dias não há relação. Esse primeiro amor é seu e não parto do princípio de que temos de ficar reféns de antigas paixões. Mas António-Pedro: não percebo... Penso nessa declaração sobre Je Vous Salue... sempre que vejo um filme seu. O que se passou? Godard mudou, traiu-o? Mas Je Vous Salue... não era propriamente um míssil apontado ao mainstream... Terá António-Pedro mudado mais?
Naquela altura, era o homem do primeiro blockbuster português, O Lugar do Morto, o filme com a esfíngica Ana Zanatti e o atarantado Pedro Oliveira, vedetas televisivas (já então...). O filme era assim uma coisa francesinha, tocante, elegante. Quando mais tarde vi um anterior filme seu, Oxalá (1981), ficou na minha cabeça adolescente: "este é o Truffaut português". Um link com o cinema. Uma certa fragilidade. Você olhava como cineasta.

Isso desapareceu dos seus filmes. Envergonhou-se? Foi traído o cinema pela televisão. Naquele delírio de ver Soraia a dar um pontapé em A Bela e o Paparazzo, a realidade impôs-se: não se pode mandar embora a televisão com medo de que ninguém veja o filme.
Mas assim a comédia é oportunista. Tem sido assim o mainstream português: o imaginário, a forma paternalista de tratar o espectador, a falta de gosto... A Bela e o Paparazzo nada tem a ver com cinema. Os planos têm na memória anúncios para telemóveis e carros.
Fala em Eastwood na entrevista ao Ípsilon; e em Lubitsch, Chaplin... Força: seja um Eastwood (ou um Almodóvar), precisamos disso. (Porque é que os seus filmes não são como os de Eastwood, já agora? Por causa dos subsídios?)

Quanto a Lubitsch e Chaplin: esses eram cineastas sem medo.
Resta-nos O Pátio das Cantigas. Que é cinema de bairro, comprometido. Centenas de milhar de portugueses vão ver A Bela e o Paparazzo. Como quem consome junk food e passa à frente. É uma vitória (as bilheteiras) sem glória. E quem é que no mundo quer ver A Bela e o Paparazzo?

O cinema português não existe lá fora, disse há semanas na televisão. O seu, não. O de outros, sim - é até mais respeitado lá do que cá. Google Pedro Costa, por exemplo, e vai ver as retrospectivas, homenagens, as t-shirts, as listas dos filmes da década - sim, há filmes de cineastas portugueses em listas internacionais dos filmes da década. É um nicho? Caramba, não são filmes vistos no underground: Juventude em Marcha esteve em competição em Cannes, ao lado de Nanni Moretti, Sofia Coppola, Almodóvar, é o maior festival do mundo, coberto por dois mil jornalistas que sobre estes filmes escrevem para os seus países. O mundo, ao contrário do que diz António-Pedro, olha para o cinema português que quer mundo. Não olha é para o cinema do pátio - que é o que tem sido o mainstream português: xunga.

3. Sim, concordo: é preciso que os filmes dialoguem com os portugueses. De outra forma, como podemos existir? Mas poderá ser isso também um problema dos portugueses e não apenas dos filmes? E é isto que nos oferecem como mainstream? Em A Bela e o Paparazzo Nuno Markl grita a independência do seu prédio, cria o seu próprio país. Se isto continua assim é o que eu vou fazer... vou ali e já não venho.

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