Quando o pó assenta em Port au Prince

A praça Champs de Mars enche-se de gente. As pessoas ouvem a música e vão para ali. Iriam por qualquer razão, parece. Estão fartas de andar sozinhas. A tragédia é de todos, mas mesmo assim é solidão.

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Carlos Barria/Reuters

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“Não há uma única pessoa, em toda a cidade, a quem não tenha morrido alguém muito próximo”, diz Jelmaa, que perdeu uma irmã. Ninguém pode olhar a catástrofe como sendo dos outros. Mas isso não une, porque cada perda é irredutível e absoluta.

Em Port au Prince cada um está por si. O saque tornou-se normal. Fazer dinheiro à custa da desgraça dos outros também. O terramoto nivelou tudo por baixo. A cidade é amorfa e confusa e reina um estranho sentimento de que, agora, tudo é de todos. Mas nem este comunitarismo selvagem une as pessoas. Enquanto o pó do sismo não assenta, os seres humanos não descansam. Correm de um lado para o outro como um formigueiro destruído, e não se olham nos olhos. Mas mais tarde ou mais cedo a vida tem de recomeçar. Está aberto o espaço para um chamamento qualquer. As pessoas têm vontade de cantar em conjunto.

Chantal Nicola está no meio da multidão e é das que cantam mais alto. Das que dançam com mais loucura. Fecha os olhos, levanta os braços, balança o corpo e grita: “Gloire!"

Numa plataforma mais alta da praça foi montado um palco e um sistema sonoro, para que possa tocar a banda e pregar o pastor da Igreja de Deus. “Vocês estão aqui porque Jesus vos chamou!”, diz ele, com o arrebatamento dos pastores evangélicos. “Jesus tem uma mensagem para vocês!” Fala alto, puxando pela multidão. Depois pede às pessoas que escrevam o seu nome e lho entreguem, para que sejam feitas orações por si, por cada um em concreto. Ainda não acabou de dizer isto e uma mulher corre já desesperada à procura de um papel. Rasga uma folha do bloco de um repórter e escreve lá, febrilmente: Juslaine Joseph.

Chantal está confusa. Não sabe bem como se faz isto, porque esta não é a sua Igreja. “Sou católica, mas vim aqui porque quero cantar para Deus”, explica, agarrando a mão do único filho, de cinco anos. Ela, Chantal, tem 20, e é solteira. Ficou sem casa e está a viver, com o filho, a mãe e vários tios e primos, num agrupamento de desalojados ali ao lado. “O importante é rezar.” Os padres católicos não organizaram nenhuma missa desde o terramoto. Os santos vudus, dizem as pessoas, andam meio acabrunhados, talvez com vergonha de não terem adivinhado o que aconteceu. Por isso Chantal reza com os protestantes. “Não sei onde estão o católicos. Vou começar a vir a esta Igreja”.

Teoricamente, a maioria da população do Haiti é católica. Ao mesmo tempo, o vudu é a maior religião. Entretanto, toda a gente é protestante. Ninguém vê mal no sincretismo. Uma pessoa pode afirmar-se católica, ir à cerimónia evangélica pentecostal e consultar o sacerdote vudu. Mas depois do terramoto a competição entre as religões parece estar a ser ganha pelo evangélicos.

"A fé no Eterno é majestosa!”, grita o pastor, e as pessoas respondem: “Gloire!"

"O Eterno faz tremer o Deserto!"

"Gloire!"

"O Eterno faz tremer os mares!"

"Gloire!"

Agora todos cantam, e muitos estão a chorar, alguns fecham os olhos e gritam o que lhes vem à cabeça, fazem pedidos a Deus, queixas, admoestações, promessas. Entram num transe que parece demente, vomitam um chorilho de palavras, sem pausas, um eco incompreensível do seu fluxo de consciência, como se um buraco negro de angústia e revolta lhes explodisse na cabeça.

Chantal é quem atira palavras com mais força, mais aflição. Torce o corpo magro e sujo, fecha os olhos e abana a cabeça, cerra os punhos, levanta o rosto, belo e negro, coberto de pérolas de suor, sozinha com o seu filho, mas unida aos outros por uma fé que nem é a sua, por um impulso, por um nada, por um grito.

"No palácio do Eterno todos clamam!"

"Gloire”.

A destruição é monumental. Tem a sua imponência. Olhar para uma cidade esmagada é em si mesmo esmagador. Um horizonte de escombros não deixa de ser um horizonte. A cidade alterou a sua forma mas ainda está no lugar. À medida que o pó assenta as pessoas habituam-se à nova geografia. É uma experiência curiosa entrar num táxi e dizer: para a rua tal, número tal. O condutor anda às voltas, tentando reconhecer os vestígios de um mundo antigo, como um arqueólogo. “É aqui. Ou melhor, era aqui.”

De início, as consequêncais físicas do abalo provocam o assombro. Mas quando o pó assenta tudo isto começa a parecer irrisório. Toda a devastação de edifícios, avenidas, até mesmo os movimentos colossais das placas tectónicas, tudo parece insignificante, mecânico, comparado com as mortes que provocou. É apenas a terra que abana e há uma explicação científica. A única desmesura é a morte. Há uma desproporção incompreensível. À medida que o pó assenta as pessoas vão aceitando o que aconteceu. Vão-se habituando à nova situação. Mas ainda não começaram realmente a sofrer pelos mortos. Ninguém pode aceitar a ideia de que o filho morreu esmagado com o muro da própria casa. Só porque estava a dormir. Porque não fugiu a tempo. A destruição é a imagem do que aconteceu, mas interiorizar essa imagem não é interiorizar a morte. O verdadeiro terramoto ainda não chegou.

Kerina perdeu a mãe, o pai e um filho em Léogane, e no entanto só fala de outras coisas - o preço da comida e do combustível, a forma como a casa caiu “em panqueca”, não deixando qualquer espaço entre as placas e os andares... Nada sobre a família, que nunca saiu daquela casa. “Sem pai, sem mãe, sem filho, acabou-se a vida, não é?”, diz Kerina, a rir.

No meio de uma praça, perto de uma bomba de gasolina da Texaco cuja cobertura se abateu sobre um camião-cisterna como um lençol de betão, está um miúdo a chorar. No meio da confusão e do pó, olha para todos os lados e chora. Está sozinho, talvez perdido.

Ainda não se sabe quantas crianças ficaram sem pais, sem ninguém. Mas por todo o lado se vêem crianças sozinhas. Já antes do sismo, o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados calculava existirem no Haiti mais de 300 mil crianças entregues pelos pais a famílias mais ricas, para trabalhar. Chama-se-lhes os restavek (corruptela de rester avec). A ONU estima agora que, com o terramoto, entre 40 e 60 mil crianças foram mortas, ficaram órfãs ou foram abandonadas pelos pais. Os orfanatos da cidade não aceitam mais ninguém. “Todos os dias recusamos muitas crianças”, diz Pierre Alexis, director da Maison des Enfants de Dieu. “Aceitámos uma, de oito meses, cujos pais morreram. Chama-se Belando.”

Mais de cem crianças deste orfanato devem seguir nos próximos dias para os EUA, depois de longos processos de adopção. Mas os meninos que vagueiam pelas ruas são presa fácil de traficantes. Abraçam-se a quem encontram. No aeroporto aterram e descolam sem controlo aviões privados de que nem sempre se sabe a proveniência e o propósito. Estranhas personagens chegam, enquanto os repórteres internacionais abandonam o país. O pó assenta em Port au Prince.

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