Este filme vai salvar Hollywood?

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"Avatar" está a ser escrutinado como poucos filmes o foram na história do cinema: porque é o primeiro de James Cameron desde "Titanic"; porque é o primeiro "blockbuster" sério a explorar a fundo o 3D digital. E há até quem coloque nos seus ombros o manto da salvação de uma indústria em crise. Eis o desafio: sente-se e espere uma experiência que não é possível viver a não ser numa sala de cinema.

A pergunta não tem sido posta desta maneira tão óbvia. Mas é essa a questão na cabeça dos observadores: será o novo filme de James Cameron o "oráculo" que pode apontar a saída para a crise que Hollywood enfrenta?
E porque o seria? Primeiro, porque é a primeira longa-metragem do realizador canadiano em doze anos, desde "Titanic" (1997) que, com quase dois milhares de milhões de dólares de receitas, se tornou no filme de maior sucesso de sempre.
Porque, depois, é o filme mais ambicioso a tirar partido da nova tecnologia de 3D digital - e o primeiro, que não é uma animação nem um filme de género, a pretender usar a técnica como algo mais do que simples "truque" de feira para chamar audiência, mas antes como uma janela para um universo criativo.

Porque, enfim, Cameron é um visionário que, de cada vez que filma, expande as fronteiras do que a tecnologia permite (bem como a dimensão das úlceras dos estúdios). Para "Avatar" criou um novo sistema de câmaras tridimensionais e refinou a tecnologia de "performance capture" que permite transformar em animação digital o registo do movimento e da expressão facial dos actores - chutando para canto as tentativas de Robert Zemeckis em "Polar Express", "Beowulf" ou "Um Conto de Natal".

Mas, sobretudo, porque Hollywood, ela própria, não sabe bem para onde se virar para manter o seu estatuto de fábrica de sonhos. E, ao entregar-se nas mãos de Cameron, cineasta gloriosamente incontrolável que escreveu "Avatar" há quinze anos e preferiu guardá-lo na gaveta até a tecnologia lhe permitir cumprir a sua visão, não há garantias que a salvação que procura esteja ao seu alcance. Porque, como o próprio disse à Associated Press, quanto mais alto for elevada a fasquia das expectativas, maior pode ser a desilusão.

Crise 2009

Dizer que Hollywood precisa de ser salva parece uma afirmação lírica. Os números de bilheteira americanos são escrutinados meticulosamente ao longo do ano e, apesar da oscilação dos comentadores entre a previsão da catástrofe e os elogios triunfalistas, todos os anos se batem recordes de receitas e de espectadores.
Mas, por trás dos triunfos globais de "blockbusters" descartáveis como "2012" ou "Transformers: Retaliação", ou dos êxitos de produções modestas como "A Ressaca", "Distrito 9" ou "Actividade Paranormal", a crise não passou ao lado da indústria.
Os fundos de investimento globais, uma das mais fiáveis fontes de financiamento nos últimos anos, reduziram o investimento ou fecharam a torneira. O mercado do DVD, uma das maiores fontes de receitas, entrou em queda e a transição para o formato Blu-Ray está longe de compensar o dinheiro perdido. As seis grandes "majors" hollywoodianas reduziram o seu volume de estreias anuais, fecharam ou venderam divisões especializadas ou menos rentáveis, entraram em contenção de despesas e fizeram despedimentos em larga escala. E, pior, os "blockbusters" têm-se estampado. 2009 foi um ano negro para duas das seis grandes, a Universal e a Disney, que substituiram prontamente as suas direcções criativas.

O que complica tudo é que, hoje, a regra é um filme de Hollywood lucrar um terço da sua receita em sala, um terço no circuito internacional e um terço em DVD, fora os valores astronómicos investidos no "marketing". Se o terço do DVD se vem abaixo e e se o filme não rende em sala? Houston, temos um problema.
Ainda não começámos sequer a falar da oferta televisiva entre canais generalistas e de cabo e a disponibilização de programas online, do "home cinema" (apesar de tudo, é mais barato ficar em casa a ver um DVD no LCD do que meter-se no carro para ir ver um filme ao multiplex), ou da partilha de ficheiros online que tanto disponibiliza clássicos que não se vêem nas salas ou encontram em DVD como versões pirateadas dos novos lançamentos em sala.

No meio desta paisagem, "Avatar" é, visto por um prisma, o sonho de qualquer estúdio: uma experiência cinematográfica que não é possível viver a não ser numa sala de cinema. Um filme realizado por um cineasta de sucesso garantido, que inventou uma nova maneira de criar efeitos visuais, que força os limites da tecnologia. Em rigor, a narrativa de "Avatar" não precisa do 3D para nada: um ex-Marine paraplégico descobre uma razão para viver através do "avatar" que controla no distante planeta Pandora junto dos Na'vi, povo que vive em harmonia com a natureza e que ele acaba por liderar numa revolta contra os humanos que querem explorar as riquezas naturais do planeta. O 3D introduz apenas uma dimensão extra no universo visual que justifica em absoluto o deslumbramento.

Mas, por outro prisma, "Avatar" é o pior pesadelo de qualquer estúdio: não tem uma estrela de primeira grandeza a transportá-lo (Sigourney Weaver tem apenas participação especial), não é uma sequela, não se baseia numa personagem de BD, e custou tão caro que é legítimo perguntar se alguma vez recuperará o investimento (fala-se de 500 milhões de dólares entre rodagem, pós-produção e "marketing", número que a Twentieth Century-Fox já desmentiu como "ridículo" e que fontes põem mais próximo dos 250 milhões). E é este filme que vai salvar Hollywood?

Armas secretas

A "arma secreta" de "Avatar" são duas. Uma chama-se "3D digital". A outra chama-se "fé".
O cinema em 3D ainda tem a reputação de truque de feira que ganhou quando surgiu pela primeira vez nos anos 1950, com os óculos baratos de duas cores que davam uma dor de cabeça desgraçada ao espectador. A técnica foi abandonada ao fim de um par de anos. Até que a tecnologia de projecção digital permitiu resolver o problema: hoje, o 3D é mais agradável para o espectador, que adiciona alguns milhões de dólares ao orçamento de um filme mas permite igualmente aos estúdios e aos exibidores cobrar uma sobretaxa no bilhete para cobrir o aluguer e manuseamento dos óculos. Ou seja: como o bilhete é mais caro, o estúdio e o exibidor ganham mais e, por conseguinte, lucram mais.
É esse lado pragmático, financeiro, que explica porque é que a indústria está tão interessada em impôr o 3D: uma fonte de receitas que pode representar a diferença entre ganhar ou perder dinheiro - razão pela qual Francis Coppola é um céptico do formato.

No entanto, até agora, a tecnologia tem sido maioritariamente restringida a produções específicas, filmes-concerto, animação e filmes de terror, usada como truque visual. Se, na animação, "A Idade do Gelo 3" e "Altamente" confirmaram que a técnica, bem usada, pode ser mais do que isso, "Avatar" é a primeira tentativa de aplicar a tecnologia a um filme "sério" - e o seu sucesso poderá abrir as portas à utilização da técnica como mais uma ferramenta na caixa dos realizadores em vez de um "gimmick" visual de vida efémera ou uma técnica limitada a géneros específicos. Cameron usa o 3D como janela para o universo de Pandora, como um modo de reforçar os seus cuidadíssimos efeitos visuais; mais do que "épater le bourgeois", a ideia é tornar este universo tão fotorrealista como o mundo lá fora. E, no processo, possibilitar um retorno ao ponto zero do maravilhamento que o cinema criou nos inícios.

Cameron é a primeira pessoa a admiti-lo, como disse a Dana Goodyear, da revista "The New Yorker": "A ironia é que as pessoas pensam [em "Avatar"] como um filme em 3D e a discussão não passa daí. Mas penso que, quando o virem, essa discussão desaparece. A tecnologia é suficientemente avançada para desaparecer sozinha" - e apenas ficar a história que ela serve. E tem razão: a proeza técnica esbate-se à medida que o filme avança.

É isso que justifica a "fé" como arma secreta - fé da Fox em que Cameron seja capaz de cumprir o que prometeu: fazer um filme capaz de recuperar esse deslumbramento primordial de ver qualquer coisa que nunca se conseguira ver antes. E, sobretudo, também fé em que Cameron consiga com "Avatar" um novo "Titanic", um filme de tal maneira abrangente no seu "código genético" que toda a gente o queira ir ver.

Não é, por isso, casual que o próprio Cameron, numa entrevista com Geoff Boucher, do "Los Angeles Times", tenha alinhado "Avatar" com filmes como "Danças com Lobos" (Kevin Costner, 1990), "A Floresta Esmeralda" (John Boorman, 1985) e "A Brincar nos Campos do Senhor" (Hector Babenco, 1991), ou invocado o nome de escritores clássicos como Rudyard Kipling, Edgar Rice Burroughs ou Joseph Conrad. O que filmou, na realidade, é a história de uma viagem iniciática numa outra cultura dobrada de redenção e redescoberta - Jake Sully, o Marine interpretado por Sam Worthington, transita da cultura guerreira humana para a cultura guerreira Na'vi através de uma série de rituais de passagem claramente inspirados pelas aventuras exóticas que fizeram sensação nos primeiros tempos do cinema.

A esse nível, então, "Avatar" é uma jogada triplamente arriscada. Não apenas usa uma técnica de um modo como nunca foi usada antes como o faz num filme que invoca uma herança criativa esquecida, e, sobretudo, implica um colossal investimento financeiro que repousa nos ombros de um cineasta incontrolável. Cameron trabalha dentro de Hollywood, sim, mas nos seus termos: "Exterminador Implacável 2" (1991) foi o primeiro filme a ultrapassar os 100 milhões de dólares de orçamento, "Titanic" o primeiro a passar os 200 milhões - de tal maneira que a Fox se viu obrigada a encontrar um parceiro de financiamento e Cameron abdicou do seu salário para garantir controle criativo (depois do êxito, a Fox restituiu-lhe o dinheiro).

Depois do triunfo de "Titanic", nenhum estúdio ousaria restringir Cameron. Mas uma indústria com histórias de horror de realizadores megalómanos ("As Portas do Céu", de Michael Cimino, "enterrou" a United Artists em 1980) não se pode sentir à vontade ao colocar uma aposta tão forte como "Avatar" nas mãos de um dos raros cineastas que é impossível controlar.
Sejamos honestos: com toda a atenção que tem gerado, dificilmente "Avatar" será um desastre de bilheteira, e convirá não esquecer que 2009 tem provado ser um ano de ouro para a ficção científica - a "space opera" pós-moderna de "Star Trek" (J. J. Abrams, 2009) e a sátira sociopolítica de "Distrito 9" (Neill Blomkamp, 2009) ressoaram com audiências globais de modos improváveis. "Avatar" cruza esses ângulos e mais, numa espécie de "megamix" dos "greatest hits" dos filmes de aventuras siderais.

Mas, como se costuma dizer, "cada caso é um caso". E convém sempre recordar as palavras sábias do grande argumentista William Goldman: em Hollywood, ninguém sabe nada. Só acham que sabem. E é por isso que "Avatar" pode não salvar Hollywood. Mas da reputação já ninguém o livra.
E as expectativas? Talvez seja melhor deixá-las em casa.

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