Klezmer para não judeus

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Os Melech Mechaya são cinco portugueses que estudaram música clássica e fazem música klezmer. Nenhum é judeu. Aprenderam a pronúncia em vídeos do Youtube. É uma piada? Só para quem não os viu ao vivo.

Pergunta: Qual é a sílaba mais usada num concerto dos Melech Mechaya?
Resposta: "A sílaba mais pronunciada nos concertos dos Melech Mechaya é 'La'".
"La"?
Sim, "La".
"La" de "Lalalala". Porque como ninguém percebe o que eles estão a cantar, "muitas vezes", diz Miguel Veríssimo, "o público canta 'Lalalala' em vez da letra".
E, podemos garantir, funciona à mesma.
Miguel Veríssimo não é cantor, mesmo que aqui e ali tenha de dar um pé de canto. É clarinetista, e um quinto dos Melech Mechaya. Os restantes são João Graça (violino), André Santos (guitarra), João Sovina (contrabaixo) e Francisco Caiado (percussionista).
Juntos eles constituem o único projecto português de música klezmer, a música judaica não litúrgica cujos mais conhecidos representantes são os nova-iorquinos The Klezmatics.
Quem os oiça em "Budja Ba", o primeiro disco, acabado de lançar, pode ser levado a pensar que eles fazem parte da comunidade judaica portuguesa, e que a música é uma forma de perpetuar uma tradição, ou de a trazer para Portugal, onde não consta haver grande fartote de música klezmer.
Mas Miguel é pronto a desmistificar o assunto: "Não há qualquer ascendência judaica da nossa parte", esclarece. E acrescenta: "Até agora só uma pessoa nos fez piadas com circuncisão".
Portanto, a questão é: o que leva um quinteto de rapazes na casa dos 20 e poucos anos, que não têm qualquer ligação ao judaísmo, a fazer música klezmer?
Uma das hipóteses pode ser: a dança.
João Graça: "Nunca tinha explorado esta sonoridade antes, mas já havia ali qualquer coisa, uma energia, uma festividade que nos interessava".
Curiosamente, no dia anterior à conversa com o Ípsilon, tinham dado um concerto em Vila Nova de Foz Côa que não correspondeu a essa demanda.
"Ninguém dançou", contou-nos Miguel, que, em concerto, funciona como uma espécie de porta-voz da banda: é ele que faz as piadas entre as canções. "Mandavam os filhos lá para a frente dançar. Mas no fim exigiram um encore".
Esta não é obrigatoriamente a típica reacção de um público num concerto dos Melech Mechaya. Vimo-los tocar nas festas de um bairro popular e foram pura e simplesmente electrizantes. O som foi abaixo duas vezes e nem assim desistiram: pediram ao público que se juntasse num espaço curto, e tocaram em versão não amplificada. Ainda assim, toda a gente dançou. E, obviamente, cantou com muitos "Lalalalas".
(Uma boa parte do mérito do êxito dessa actuação deveu-se à qualidade de "entertainer" de Miguel Veríssimo, que, entre canções, ia disparando piadas atrás de piadas. Não se vai a um concerto dos Melech Mechaya à procura de seriedade - e eles são os primeiros a dizê-lo.)

A tradição não manda
A história da aproximação deste quinteto de rapazes à música judaica, "não é muito interessante", confessa Miguel.
"Chegou-nos às mãos um livro de música klezmer com canções tradicionais judaicas a partir das quais começámos a construir reportório, isto em 2006. É tão simples quanto isto".
Mais interessante é a história deles: à excepção de André, todos estudaram música. Alguns conheciam-se de vista do Conservatório e chegaram a interpretar peças judaicas juntos quando ainda não trocavam duas palavras.
Além disso, têm igualmente gostos bastante eclécticos.
João Sovina tocava com André numa banda de garagem que não ficará para a posteridade: "Nem me lembro do nome, mas tocávamos hardcore". André e Francisco Caiado tiveram os Amazonas, uma banda de funk à qual se juntou Sovina. "Depois tocámos flamenco". Miguel Veríssimo, por sua vez, conheceu André no Conservatório e começou a tocar com ele num projecto de chorinho, enquanto João Graça tocava Música Popular Brasileira. Em Itália, durante o Erasmus.
Portanto, temos hardcore, funk, flamenco, chorinho e MPB. No meio desta confusão, faz sentido que toquem música klezmer. Ou outra coisa qualquer.
Quando o mencionado livrinho de música klezmer lhes foi parar às mãos, Miguel e André resolveram "incluir algumas canções klezmer no reportório de chorinho". E aí tiveram "a ideia de trazer mais gente para tocar".
Não falam da música klezmer com sacralidade. Têm noção de onde ela vem, isso é certo: João Graça lembra que "é música que tem cinco séculos de história", que "surgiu no Leste e é tocada em celebrações não litúrgicas, como baptizados e bar-mitzvhas" e Miguel acrescenta que "também é tocada em funerais e foi muito desenvolvida em guetos judaicos". Mas não teorizam em excesso. (Aliás, João Sovina afirma que "saber muito de música pode ter os seus defeitos. Às vezes um tipo pode afastar-se do lado mais visceral e tentar racionalizar demasiado aquilo").
O klezmer que se ouve no disco dos Melech Mechaya não é tal e qual o que a tradição manda. "Em termos melódicos respeitamos as canções", explica Miguel, mas, diz João Graça, "as partes B, por norma, censuramo-las". (As canções por norma têm uma parte A, uma parte B, um refrão e volta ao início.) A parte B do klezmer é, diz Graça, "a parte mais cómica, em tonalidade maior" e adquire, segundo Miguel, "um tom pimba" que lhes desagrada. Pelo que cortam e recolam a seu belo prazer. Também compõem a partir da matriz.
Só usam palavras numa canção, "Hava Nagila", cujo título, segundo João Graça, aprenderam "a pronunciar num vídeo do Youtube, do festival da canção": "Eu já tinha estudado umas peças em hebraico pelo que conhecia a sonoridade de algumas palavras".
Não há tabus. No reportório ao vivo está agora a ser incluída uma velhinha canção tuga, o "Chapéu preto". E não é raro verem-nos enfiar a linha de baixo de "Billie Jean", de Michael Jackson, no meio de um concerto. Tudo pela diversão, que é o que lhes interessa. Miguel: "A primeira vez que tocámos percebemos que a música era animada e festiva. Tive uma surpresa grande com a reacção das pessoas".
Em última instância, eles são uma banda ao vivo: aceleram as canções, põem as pessoas a dançar, produzem uma bandalheira controlada. Podem vestir-se de forma vagamente judaica, mas "mesmo a roupa não bate de todo certo com o que é a tradição", diz João Graça.
"A ligação que temos com a tradição é muito ligeira", explica o violinista. Miguel põe as coisas de forma simples: "Há um certo tipo de melodias de que gostamos, é tudo". Depois o violinista acrescenta, com humor: "Não temos ambição de sermos judeus".

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