O mundo segundo Werner Herzog

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Duas caixas de DVD revelam em Portugal grande parte da obra do cineasta alemão, numa viagem fascinante e perturbante a um dos mais singulares e peculiares universos do cinema de autor europeu dos últimos 40 anos. À atenção dos exploradores

Em 1975, Werner Herzog dedicou um documentário aos leiloeiros de gado americanos e ao modo impossivelmente rápido como eles falam. Em "How Much Wood Would a Woodchuck Chuck" (título intraduzível devido à sua condição de "trava-línguas" específico à língua inglesa, comparável ao nosso "o rato roeu a rolha do Rei da Rússia"), Herzog extrapolava que uma tal variação do inglês era, à imagem do alemão arcaico falado pela comunidade Amish, uma língua que se desenvolveu em resposta a uma necessidade específica e que não tem condições para evoluir para lá disso, tão especializada que se torna numa espécie de "poesia-limite" - "the ultimate form of poetry".
Em 2008, a propósito de uma integral da sua obra no Centro Georges Pompidou em Paris, Herzog confirmou à revista francesa "Cahiers du Cinéma" ter um projecto de longa data sobre "the last speakers of languages", os últimos falantes de uma língua em vias de extinção. "A língua", disse Herzog a Hervé Aubron e Emmanuel Burdeau nessa longa entrevista, "não é apenas um meio de comunicação. É uma maneira de ver o mundo, de o compreender. É um mundo a parte inteira. Uma maneira de compreender o mundo e de lhe dar sentido. Uma maneira de nos organizarmos enquanto ser humano no interior deste mundo."
Herzog podia estar a falar do seu próprio cinema, e a monumental edição em DVD de grande parte da sua obra em duas caixas agora distribuídas entre nós (depois da retrospectiva parcial feita no IndieLisboa deste ano) mostra-o - ver caixa nestas páginas.
Sejam bem vindos ao mundo segundo Werner Herzog.

A aventura interior
Há vários momentos-chave ao longo dos 28 filmes reunidos nestes DVD, mas não resistimos a sublinhar dois. No seu "auto-retrato" "Werner Herzog: Cineasta" (1986), Herzog fala da viagem a pé, da caminhada, enquanto crucial "motor" criativo que lhe sugere imagens, situações, diálogos, ideias. No documentário que dedicou à sua conturbada colaboração com o actor Klaus Kinski, "O Meu Melhor Inimigo" (1999), Herzog evoca o choque que teve com Kinski durante as rodagens de "Aguirre, o Aventureiro" (1972) à volta da sua recusa de filmar a paisagem em modo "postal turístico".
E Herzog podia tê-lo feito, numa obra rodada quase inteiramente em exteriores remotos (da Grécia à Tailândia, dos EUA ao Gana, passando pelo Peru, Brasil, Colômbia, Nigéria, Madagáscar, Austrália...). Mas, para ele, todas estas paisagens remotas funcionam apenas enquanto enquadramento para a "chama e a emoção humana". Como se o que importasse realmente fosse a "aventura interior" a que todas estas viagens finalmente se reduzem - o que é apropriado para uma obra identificada com as personagens-limite que se tornaram no "leit-motiv" do seu cinema. Soldados alucinados, conquistadores megalómanos, pastores profetas, emigrantes perdidos, vampiros solitários, fantasistas obcecados: todos eles se perdem cada vez mais dentro de si próprios à medida que se perdem cada vez mais fundo na selva que os rodeia, quer ela seja literal (o Peru, a Amazónia) ou metafórica (a sociedade americana moderna, a Alemanha provincial). Viagens que Herzog, mais do que acompanhar, vive com as suas personagens - e leva o espectador a viver também.
Um dos lados do "triângulo" da obra de Herzog é, aliás, composto de "filmes-ensaio" onde a narrativa é uma componente secundária ou inexistente face ao desejo de criar uma experiência audiovisual sensorial, na qual o espectador é envolvido - objectos como "Vilões e Anões" (1970, uma influência fortíssima nos primeiros Lynch), "África, Paraíso e Inferno" (1971) ou o conto-de-fadas distorcido "Coração de Gelo" (1976). É não apenas a mais singular vertente da sua obra, mas também aquela que Herzog continua a explorar melhor e com maior sucesso, como o provam longas mais recentes (não incluídas nesta edição) como "The Wild Blue Yonder" (2005) e "Encounters at the End of the World" (2007), ou o sublime filme-ensaio aqui incluído sobre o pós-Guerra do Golfo, "Lições de Escuridão" (1992), intimação apocalíptica de um mundo "interminável mas que um dia acabará" (e, aos "Cahiers", Herzog dizia: "os homens não são um elemento estável neste planeta"). O seu cinema é sempre um confronto entre a criação e o apocalipse, entre o mundo que cada um de nós cria para si próprio e o mundo que existe lá fora.
Isso vem também do período que viu a ascensão de Herzog (nascido Werner Stipetic em Munique, em 1942): os anos 1970 foram a década dos filmes que fizeram a sua reputação. Foram também a década do "novo cinema alemão" (Fassbinder, Schlöndorff, Syberberg, Wenders, Von Trotta, Kluge, Reitz...), um dos movimentos mais ricos do cinema de autor europeu da altura; e também a década de todos os riscos, não apenas em termos daquilo que era possível fazer mas também em termos daquilo que era aceite pelo público. É impossível ver estes filmes, hoje, sem nos perguntarmos se ainda seria possível fazer e, sobretudo, mostrar objectos tão imperscrutavelmente oblíquos como "África, Paraíso e Inferno" ou "Coração de Gelo", que mesmo numa década recordada pelo seu experimentalismo têm algo de OVNI, de objecto "fora".

A duração do olhar
Mas essa necessidade de criar uma experiência sensorial está muito longe de ser um exclusivo dos seus filmes mais radicais. Voltamos à entrevista dos "Cahiers", agora sobre "Lessons in Darkness": "Todos os dias, durante dois ou três meses, todas as estações de televisão mostraram os poços de petróleo [do Kuwait] a arder, mas nunca durante mais de cinco ou dez segundos. Eu filmei-os com outro timing e com outra paciência, outra insistência. Filmei-os para a memória da raça humana."
O que faz a diferença do cinema de Herzog é a duração do olhar, mais longo, mais lento, mais atento. Que desorienta o espectador porque se prolonga para lá da duração "normal" de um plano, porque instala um desconforto que não recua perante a dureza do que nos é mostrado, e que é comum a todas as vertentes da sua obra, das ficções aos muitos documentários e curtas que polvilham os DVDs desta edição.
Exemplares, a esse respeito, são "A Terra do Silêncio e da Escuridão" (1971) e "O Grande Êxtase do Entalhador Steiner" (1974). O primeiro é um extraordinário documentário de longa-metragem sobre o quotidiano de uma mulher cega e surda, e o modo como Herzog usa o tempo desarma automaticamente todas as armadilhas bem-intencionadas do documentário social para filmar apenas uma mulher que interage com o mundo exterior sem deixar que a sua incapacidade a afecte. O segundo acompanha a participação do suiço Walter Steiner, saltador de esqui, num campeonato na (então ainda) Jugoslávia onde bate recordes do mundo, e trabalha as imagens dos seus saltos inteiramente ao nível da duração, desacelerando-as quase até à abstracção e recordando no processo o formalismo visionário dos filmes desportivos de Leni Riefenstahl.
Os documentários de Herzog, raramente vistos entre nós, são, aliás, a grande revelação desta edição em DVD. Não apenas pelo modo como vão "rimando" com as longas de ficção como, sobretudo, pelo evidente visionarismo de uma diluição das fronteiras entre os dois formatos, diluição que se tornou num dos motivos centrais do documentário actual mas que, há trinta anos, era uma ousadia. Desde a utilização nas ficções da câmara à mão (antecipando de trinta anos os "faça-você-mesmo" do digital) à "alteração" das narrativas de acordo com a realidade circundante (um longo segmento de "Fitzcarraldo" é uma espécie de "documentário" sobre os Jívaros), culminando na fusão indescritível das duas estéticas ("África, Paraíso e Inferno", onde imagens registadas em África servem de pano de fundo a uma voz-off inspirada pelo Popol Vuh, o mito de criação dos Quichés da Guatemala), Herzog esteve sempre a ousar mais longe e a forçar fronteiras de um modo extraordinariamente singular.
Singular e, mais do que isso, solitário - todos estes filmes foram produzidos em absoluta independência, com uma equipa reduzida de colaboradores de longa data, capazes de reagir de imediato à espontaneidade de um realizador a quem as convenções pouco interessam. Aliás, como o prova "Cobra Verde" (1987), a menos interessante das ficções incluidas nesta edição, ou o mais recente "Espírito Indomável" (2005), com Christian Bale (não incluido aqui), o Herzog mais espartilhado pelas convenções de um arco narrativo tradicional é significativamente menos interessante do que o cineasta em "roda livre", explorando com deleite cada canto mais recôndito do território que explorou ao longo dos últimos 40 anos. Uma janela para um "mundo a parte inteira, uma maneira de compreender o mundo e de lhe dar sentido, e de nos organizarmos enquanto ser humano no interior deste mundo."
Sejam bem-vindos ao mundo segundo Werner Herzog.

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