O homem que foi a sombra de Tony Blair

Foto
Enric Vives-Rubio

No seu livro de memórias, "Os Anos Blair", Alastair Campbell, estratega político e porta-voz de Tony Blair, dá-nos o seu relato dos anos em que o New Labour transformou o Reino Unido

É perigoso julgar alguém pela sua reputação. Alastair Campbell, o todo-poderoso assessor de Tony Blair entre 1994 e 2003, chegou a Lisboa precedido da fama de conselheiro implacável e não necessariamente polido.

Veio promover o livro em que descreve os nove anos que passou ao lado de Blair, "Os Anos Blair", e parecia interessado em dar uma imagem mais suave do que a que lhe ficou colada nesse período. Conhecido como um dos homens que construiu a máscara pública de Tony Blair, falou sobre o modo como a política é vivida por detrás das máscaras.

Escreve no livro que Tony Blair o escolheu quando ainda estava na oposição, porque precisava de um estratega e havia poucos. Como é que um assessor de imprensa tem este grau de importância?

Era o que ele queria que fizesse. Queria que fosse um porta-voz mas também queria que fizesse estratégia política. Isso tornou-se mais difícil por causa da pressão dos media modernos, que reduzem tudo ao curto prazo. Ele conhecia-me suficientemente bem para saber que compreendia os media e sabia como era possível superar o fosso que historicamente existia entre eles e o Partido Trabalhista.

Nessa altura havia uma discussão sobre se o líder trabalhista devia ser Tony Blair ou Gordon Brown. E dizia-se que o que separava os dois era a diferença entre o estilo [Blair] e a substância [Brown].

Acho que isso é errado. Dizia-se isso porque Blair é um grande comunicador e era isso que as pessoas viam. Mas a sua verdadeira força era ser uma pessoa capaz de tomar decisões. Ambos têm pontos fortes em áreas diferentes e houve tempos em que a relação entre os dois foi muito difícil.

Mas qual é a qualidade que fazia dele um líder? O estilo, a capacidade de comunicar, ou a capacidade política?

Não se podem separar as coisas. O mais importante num líder moderno é que o escrutínio é tão intenso que é preciso ter todas as qualidades.

Quando Blair vence as eleições pela primeira vez, em 1997, a imprensa está toda com os trabalhistas. A partir de certa altura isso começa a mudar e o Governo passa a ter muito má imprensa.

O seu trabalho não era precisamente evitar que isso acontecesse?

Em parte creio que sim. Mas não sei se poderíamos ter feito uma coisa diferente. Os trabalhistas sempre tinham tido uma má imprensa e boa parte dos jornais eram de direita. Nós libertávamos mais informação, havia mais declarações "on the record", o primeiro-ministro falava mais do que os anteriores. Tudo isso eram tentativas de nos abrirmos, mas isso foi lido pela imprensa como uma tentativa de a manipular. Não sei o que se passou. A partir de certa altura decidiram que não gostavam de nós e exageravam a importância do que fazíamos. Quando foi a questão do Iraque foi terrível...

Já vamos ao Iraque. Esta situação começou muito antes disso.

Em parte creio que - e não quero ser muito conspirativo ao dizer isto - o media achavam que, com os conservadores, eram eles que faziam a agenda. Agora, era o Governo a fazê-lo e a oposição não servia para nada. Então, decidiram que iam ser eles a oposição.

Os media tornaram-se a oposição? Não havia outra oposição?

Nós enfraquecemos a oposição, ocupando o centro e ficando lá.

Mas não foi essa capacidade de ocupar o centro que levou os media a apoiar-vos?

Ao princípio sim. Mas, com o passar do tempo, a imprensa de esquerda começou a achar que não éramos suficientemente de esquerda e a imprensa de direita começou a achar que nós não éramos suficientemente de direita. Para o público isso não interessava muito. Não se esqueça que, mesmo depois do Iraque, ganhámos uma terceira eleição. As pessoas apoiavam-nos muito mais do que os media. E eles ficaram ressentidos com o facto de nós dizermos que não eram tão importantes como pensavam. Também começaram a ficar obcecados comigo de uma forma estranha.

Lendo o livro, percebe-se que não tinha os jornalistas em grande consideração. Não é exactamente amável com eles...

Desagradava-me a forma como a cultura dos jornalistas se desenvolveu e eu desafiei-a. Posso dar-lhe dezenas de exemplos de histórias que sabia serem falsas. Quem escreve acha que não vai ter resposta. Eu nunca tive problemas em fazê-lo e era muito directo. Se aparecia alguém num briefing meu que tinha escrito uma coisa que eu achava uma porcaria, eu dizia-lhe isso. E às vezes dizia que achava que tinham inventado a história e que se tivessem investigado teriam percebido que era falsa.

E chegámos à questão do Iraque. Em 2003 você sai de Downing Street acusado de ter tornado "mais picante" ("sexed up") um relatório dos serviços secretos sobre a alegada ameaça das armas de destruição maciça de Saddam Hussein. Alterou esse relatório?

Não. E fui completamente ilibado dessa acusação.

O que se passou então? A afirmação de que havia uma ameaça em 45 minutos não era real?

O primeiro-ministro decidiu que queria partilhar tanto quanto era possível com o público a informação que tinha dos serviços secretos e apresentou-a ao Parlamento. A acusação foi de que tínhamos "sexed up" o relatório, que tínhamos tornado [a ameaça] maior do que era, mas o que emergiu durante a investigação é que tínhamos sido cautelosos e meticulosos.

Ainda defende que a invasão foi uma decisão correcta?

Penso que o resultado final não foi o que devia ter sido. Mas onde havia uma ditadura brutal agora há um princípio de uma democracia, começa a ser possível levar uma vida normal. Demorou mais tempo do que esperávamos? Sim. Demasiadas pessoas morreram? Sim, obviamente. Foi uma decisão muito difícil mas o que quis explicar no livro é que cada novo dado que chegava dos serviços secretos nos preocupava ainda mais. E que era preciso tomar uma decisão.

Mas o que escreve é que logo a seguir ao 11 de Setembro a invasão do Iraque já era um dado adquirido pelos americanos.

Sim. E Tony Blair também acreditava que era preciso atacar o Iraque.

Então para que serviam relatórios como o que conduziu à sua saída se a decisão já estava tomada?

A decisão não estava tomada. Mas ele [Blair] estava cada vez mais preocupado e achávamos que tínhamos de enfrentar o problema. Por isso quisemos ser mais transparentes. Normalmente não apresentamos publicamente relatórios dos serviços secretos. Era uma coisa absolutamente legítima. Não era a causa para a guerra, era a causa para ele estar cada vez mais preocupado.

Mas a razão era a mudança de regime e não as armas de destruição maciça?

Até Bill Clinton tinha essa política, nós não. A questão é o modo como a situação do Iraque evoluiu.

Acusa a BBC de ter conspirado para você sair. Porque é que a relação era particularmente má com eles?

Não digo bem isso. Penso, quanto ao Iraque, que muitos dos seus principais jornalistas eram pessoalmente contra a guerra. Quanto à questão do relatório, isso foi um nível diferente de acusação. A BBC nem sequer verificou a história.

Mas é o momento em que decide sair?

Não, já tinha tomado essa decisão e acabei por ficar mais tempo por causa desse inquérito. O dia em que Kelly [David Kelly, cientista que terá informado a BBC sobre as mudanças introduzidas no relatório e que se suicidou a seguir à divulgação deste] morreu foi um dos piores da minha vida. Sabia que ia ser acusado pelos media e sabia que já tinha aguentado o suficiente. Tratava-se de alguém que eu não conhecia, que não me conhecia, que pode ou não ter-me censurado. É obviamente alguém que disse alguma coisa a um repórter, mas ninguém podia imaginar que ele se ia matar.

Elogia George W. Bush afirmando que as pessoas passam a vida à espera que apareça um político que diga o que realmente pensa e que quando isso acontece já não o querem.

Provavelmente, ele absorveu a imagem que as pessoas tinham dele. Tinha uma compreensão muito maior do mundo do que se pensa. E era muito irónico, fazia muitas piadas sobre si próprio. A minha política não é a dele. Mas se ele fosse um imbecil, como teria chegado ali? Hoje vemos Obama quase como um Deus e Bush como um demónio. Não é verdade. São ambos seres humanos com pontos fortes e pontos fracos. No meu diário talvez haja pessoas que eu trato demasiado mal e pessoas com quem sou complacente. Mas são as minhas impressões, em momentos específicos.

Tony Blair disse que se você fosse religioso seria um fundamentalista islâmico.

Sei o que ele quer dizer. Acha que eu sou excessivo a fazer as coisas.

Sugerir correcção
Comentar