"A diferença entre o underground e o comercial dissipou-se"

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Helder Olino

Tem 82 anos, mas podia ter menos 10. Estão perto de 30 graus em Lisboa e ele usa um blusão de cabedal preto. O bicho raro olha-nos como se fôssemos um bicho raro. Respondeu às perguntas como quis. Isto é, foi lacónico. Kenneth Anger dentro de momentos na Cinemateca, na ZDB, em Serralves

Kenneth Anger tem fama de ter um temperamento irascível, mas apenas mantém uma distância desconfiada. O homem que tem uma simpatia com o diabo (tem "Lucifer" tatuado no peito, é um seguidor do mago Aleister Crowley e a sua filmografia tem explorado o tema do ocultismo), o realizador "underground" que o "New York Times" descreveu como "o elo perdido entre Caravaggio e Bruce Weber" conversou com o Ípsilon poucas horas antes da apresentação de uma série de filmes seus, esta noite (segunda-feira), na Cinemateca, em Lisboa - e que é o pontapé de saída para todo um ciclo Kenneth Anger, que se estende à Galeria Zé dos Bois e à Fundação Serralves.

Continua a filmar e trouxe uma surpresa para quem passar esta noite pela Cinemateca: uma das suas mais recentes curtas, "Brush of Baphomet" (2009), sobre as pinturas de Aleister Crowley. A sua exibição não estava prevista no programa. Anger vai também tocar "theremin" esta quarta-feira em Serralves, e sábado no Palácio de Valadares, em Lisboa. Tem 82 anos, mas podia ter menos 10. Estão perto de 30 graus em Lisboa e ele usa um blusão de cabedal preto. O bicho raro olha-nos como se fôssemos um bicho raro. Respondeu às perguntas como quis. Isto é, foi lacónico. 
 
 
De certa forma, o "underground" foi hoje apropriado pelo centro. Quase se pode dizer que o "underground" é o novo "mainstream".

É inevitável que certas coisas sejam adoptadas. Até nos anúncios, eu vejo pequenas coisas. [risos]
 
A palavra "underground" ainda faz sentido hoje?

Talvez não como em tempos. A diferença entre o que é "underground" e não, e o que é comercial e "avant-garde", tudo isso se dissipou hoje. 
 
Antigamente, era mais difícil fazer "underground"?

Foi sempre uma luta encontrar dinheiro para fazer as coisas. Os filmes não são como poesia, em que só é preciso um pedaço de papel. É preciso câmaras e película e várias coisas. Mas lutar contra as dificuldades também é uma coisa boa. 
 
O que o motiva a fazer filmes hoje ainda é o mesmo que o motivava?

É o que faço. Se não me desse prazer, não o faria. As coisas são um pouco mais fáceis, hoje. É mais fácil conseguir dinheiro, de várias fontes. Mas não estamos a falar de muito dinheiro. Tive uns tantos planos para fazer uma longa-metragem e nunca tive dinheiro suficiente para o fazer. 
 
É tido como o primeiro a introduzir canções pop nas bandas sonoras dos filmes...

Sim. No "Scorpio Rising". E toda a gente me copiou depois. Copiou ou usou a ideia. Incluindo realizadores comerciais como Marty Scorsese, em "Mean Streets".

Numa entrevista queixou-se de como a MTV copiou uma série de coisas.

Não sei se me queixei. Nunca vi a MTV. Na verdade, sou avesso à tecnologia. Não tenho televisão em casa, nem computadores, nem telefone.
Percebi que todas essas coisas têm uma desvantagem. Se toda a gente pode ligar para mim a qualquer altura, deixo de ter vida privada. Por isso é que deixei de ter telefone. E dou-me bem com isso. Não tenho e-mail... Se alguém me quiser contactar, tem de escrever uma carta com um selo. 
 
Como descreveria o seu corpo de trabalho?

Detesto etiquetas. São apenas filmes de Kenneth Anger, é tudo. Arrumam-nos em categorias como "avant-garde" ou "experimental", o que é verdade, porque cada um dos meus filmes é uma experiência: não me copio a mim próprio, ou, dito de outro modo, tudo é novo. Mas pode-se dizer o mesmo de pintores.

Não é a primeira vez que vem a Lisboa. É um seguidor de Aleister Crowley, que contactou de perto com o poeta português Fernando Pessoa.

Sim, sei a história toda. 
 
Então já visitou o lugar do falso suicídio de Crowley?

Boca do Inferno. Ainda não. Foi uma pequena partida que ele pregou. Crowley tinha sentido de humor. Se não percebermos isso não podemos entender o homem [risos].
 
O "New York Times" descreveu-o em 2007 como o elo perdido entre Caravaggio e Bruce Weber.

Entre quem e quem?!
 
Caravaggio...

Oh, isso foi há muito tempo. Cobre imenso terreno.
 
E Bruce Weber, o fotógrafo.

Gosto de Caravaggio por causa da sua luz. Ele inventou uma luz transversal. Posso aceitar isso. Também gosto do trabalho de Weber.
 
É verdade que encara as projecções dos seus filmes como cerimónias espirituais? Em que sentido?

É uma coisa mais pessoal do que os filmes comerciais, em que milhares de cópias andam pelo mundo. Ainda mantenho um controlo muito apertado sobre as apresentações dos meus filmes.
 
Ainda vive em LA?

Sim. Tecnicamente, vivo em Hollywood. Tenho imensos amigos na indústria. Mas são sobretudo técnicos - efeitos especiais, câmara, esse género. 
 
Por que não tem amigos actores e realizadores?
Eles já têm imensa gente a prestar-lhes atenção. Não precisam de mim.
 
Não chegou a publicar o projectado terceiro volume de "Hollywood Babylon", pois não?

Acho que não posso publicá-lo, há demasiados problemas legais. Eu queria escrever sobre coisas como o culto da cientologia mas não posso fazer, segundo o meu advogado, eles são muito conhecidos por processarem toda a gente. O meu editor não quer ser processado. 
 
Diria que é mais difícil publicar um "Hollywood Babylon" hoje do que era nos anos 60?

Deixe-me ser franco: é mais fácil escrever sobre pessoas que estão mortas. Mas as que estão vivas podem ser um problema. E as únicas que constituiriam um problema para mim ao escrever são pessoas como Tom Cruise ou John Travolta. Porque aderiram a este culto chamado cientologia, sobre o qual pesquisei cuidadosamente... [pausa] Decidi simplesmente não forçar as coisas

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