Morreu JG Ballard, o psicólogo do futuro

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"Crash" e "O Império do Sol", as obras mais conhecidas do escritor, foram adaptadas ao cinema por David Cronenberg e Steven Spielberg

"Que escritor não é marcado pela sua adolescência?", perguntava JG Ballard numa entrevista à Magazine Littéraire em 1985 por ocasião da publicação em francês do seu livro mais famoso, "O Império do Sol". Muitos escritores são certamente influenciados por essa época da vida, mas no caso de Ballard - que morreu ontem, no Reino Unido, aos 78 anos, vítima de cancro na próstata - não estamos a falar de brincadeiras mais ou menos inocentes com os amigos. James Graham Ballard - e é isso que conta em "O Império do Sol" - foi preso aos 12 anos, durante a II Guerra Mundial, e passou três anos num campo de prisioneiros japonês.

As memórias não eram necessariamente negativas, mas a detenção em 1943, juntamente com os pais, mudou drasticamente a vida do rapaz que, até ali, vivera em Xangai, onde nasceu em 1930, num ambiente protegido da comunidade estrangeira na cidade sem ter aprendido chinês ou sequer provado comida chinesa. "Só comi comida chinesa quando mais tarde fui para Inglaterra", contou numa entrevista ao "The Guardian" no ano passado. Apesar da fome, da violência e das doenças, Ballard recorda-se de se divertir no campo, brincando com as outras crianças.

Essas memórias ficaram guardadas durante muito tempo. Foi só em 1984, depois de ser já conhecido como autor de vários livros de ficção científica, que Ballard, que se instalara em Inglaterra no final dos anos 60 tornando-se escritor a tempo inteiro, regressou a elas. "Muitas vezes me perguntei porque é que esperei tanto tempo", contou na mesma entrevista. "As pessoas que estiveram envolvidas na guerra costumam esperar". Acabou por se decidir por ter medo de esquecer. Mas quando o livro, parcialmente autobiográfico, foi finalmente publicado, foi um JG Ballard diferente que surgiu aos seus leitores habituais. O impacto da obra tornou-se ainda maior quando, em 1987, Steven Spielberg a adaptou ao cinema.

Diferente, por exemplo, do de outro livro que é sempre referido quando se fala dele: "Crash" (1973), uma história de desejo sexual ligado a acidentes de carro que foi depois adaptada ao cinema por David Cronenberg, o que, lembrava a BBC ontem no obituário do escritor, veio consolidar a imagem de Ballard como um autor controverso. A personagem principal (ficcional) é um bissexual chamado James Ballard.

"Realismo apocalíptico"

Até ao início dos anos 80 existiam dois Ballard, explica o Guardian na entrevista publicada no ano passado: um escrevia ficção científica e o outro "produzia narrativas intensas, de realismo apocalíptico", de que "High-Rise" (1975), retrato de um proletariado que vive num conjunto de apartamentos de luxo e que cai na violência, no canibalismo, e na ausência de qualquer moral. Entre os seus livros mais recentes destacam-se "Super-Cannes" (2000) e "Millennium People" (2003).

O próprio Ballard explica que a ficção científica "foi uma descoberta do acaso", reconhecendo, contudo que nunca escreveu "o tipo de ficção científica que era típica da época". O escritor M. John Harrison, que fazia parte da equipa editorial da revista New Worlds, que publicou muitos dos seus contos nos anos 60, confirmou ao Guardian que Ballard "nunca foi muito bem recebido pelos habituais leitores de ficção científica", porque escrevia textos "demasiado poéticos, satíricos, metafóricos, o que desencoraja a suspensão da descrença". Talvez por isso Ballard sempre preferiu dizer que o que fazia era "imaginar a psicologia do futuro".

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