Senhoras e senhores: Kate Winslet

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Está pouco interessada nas honrarias. Mas não ficará aborrecida se ganhar o Oscar.

"Que se fodam!"
Senhoras e senhores, Kate Winslet.
Sim, a Kate Winslet que se tornou numa vedeta global como a paixão imortal de Leonardo di Caprio no "Titanic" de James Cameron, e depois virou as costas a Hollywood para preferir construir uma carreira de actriz.

A Kate Winslet que guinou para fitas que passaram ao lado de toda a gente como "Fumo Sagrado", de Jane Campion, ou "Romance e Cigarros", de John Turturro, ou "As Penas do Desejo", de Philip Kaufman; ou papéis menores em filmes de prestígio como "Iris", de Richard Eyre, ou "À Procura da Terra do Nunca", de Marc Forster; ou objectos de culto como "O Despertar da Mente", de Michel Gondry.

A Kate Winslet que está este ano nomeada para o Oscar de melhor actriz (a sua sexta nomeação para os prémios) por "O Leitor", de Stephen Daldry, depois de ter sido nomeada para os Globos de Ouro de melhor actriz secundária pelo mesmo filme e de melhor actriz por "Revolutionary Road", dirigido pelo marido, Sam Mendes - e de ter ganho ambos os Globos na mesma noite.

É a essa noite memorável que uma jornalista lhe pergunta, numa "mini-conferência de imprensa" no luxuoso Hotel Adlon de Berlim, como é que reage às críticas ao seu discurso, emocionado e emocional, na cerimónia. Como quem diz, que horror, uma actriz séria a passar-se daquela maneira.

E Winslet responde-lhe, bem-disposta, do modo colorido que acima reproduzimos, face a cerca de 40 jornalistas europeus, presentes no Festival de Berlim, onde "O Leitor" tem a sua estreia europeia. "Que se fodam! Dou o litro pelo meu trabalho desde os meus 17 anos de idade e ganhei dois prémios na mesma noite. Não me lembro de isso ter alguma vez acontecido e fiquei genuinamente emocionada, e tenho direito a está-lo!"

Carrasco e amante

Kate Winslet não se parece preocupar nada com o que as pessoas acham dela. Uma citação desta conversa de Berlim: "Não sou nada vaidosa enquanto pessoa, e certamente não como actriz. A vaidade pode ser um obstáculo, não nos podemos preocupar com o modo como parecemos. Só assim podemos desaparecer dentro da personagem."

Pode ser difícil acreditar nisto quando vemos a actriz, 33 anos, mãe de dois filhos, entrar num salão requintadamente antiquado, elegantíssima num bolero cinzento sobre longas calças pretas, impecavelmente maquilhada e penteada. Uma estrela. Mas se olharmos para o trabalho que tem feito desde que a vimos pela primeira vez em "Heavenly Creatures", de Peter Jackson, faz agora 15 anos, não podíamos estar mais longe da estrela nem mais perto da actriz: irreconhecivelmente ruiva e com um sotaque cerradíssimo de Manchester em "Romance e Cigarros"; de cabelo alaranjado como a Clementine do "Despertar da Mente"; a dar voz a um rato de esgoto na animação "Por Água Abaixo"; criada do marquês de Sade em "As Penas do Desejo"; a escritora Iris Murdoch enquanto jovem em "Iris", de Richard Eyre. E agora, desmaquilhada, envelhecida, anónima, como Hanna, a mulher no centro de "O Leitor". Kate Winslet gosta de desafios, e admite-o, sem problemas: "Cada dia é um desafio, é particularmente assustador: sou a pessoa certa? sou a actriz ideal para este papel? Será que vou estampar-me ao comprido? E ir em frente não tem nada a ver com coragem. Não vale a pena uma pessoa ralar-se. Isso apenas se torna num obstáculo para agarrarmos o papel."

Hanna, a personagem principal do romance de Bernhard Schlink que o filme adaptou, é um desafio particularmente difícil: ao longo do filme, descobrimos que esta mulher são muitas mulheres, carrasco e amante, anjo e demónio ao mesmo tempo. Conhecêmo-la como revisora de eléctricos que embarca num "affaire" escaldante com um adolescente que lhe lê em voz alta, perdemo-la de vista quando ela desaparece, reencontramo-la anos mais tarde ao ser julgada como criminosa de guerra por ter sido uma guarda de um campo de concentração nazi, percebemo-la analfabeta. "É crucial compreendermos a nossa personagem," diz a actriz, "mas não temos de gostar dela. Houve momentos em que compreendi a Hanna, outros em que a odiei. Mas tinha de fazer dela um ser humano, capaz de vulnerabilidade e ternura e amor."

Stephen Daldry, director de "O Leitor", anui (sem a ter ouvido): "Os seus instintos para o papel estavam absolutamente correctos." Esses instintos implicaram não apenas "absorver o romance" mas também pesquisar sobre o analfabetismo e os guardas dos campos. "Senti-me embaraçada quanto ao pouco que sabia sobre os guardas - e só podemos absorver informação até um certo ponto antes de sermos incapazes de continuar. Mas o que acabou por ser mais importante foi a pesquisa que fiz sobre o analfabetismo, compreender o nível de vergonha que ser analfabeto implica, bem como a inteligência extraordinária que exige para sobrevivermos, o modo como inibe qualquer tipo de relação pessoal. É impossível ter uma imaginação quando somos analfabetos."

Um jornalista israelita pergunta-lhe se o filme pretendia fazer o público simpatizar com ela, torná-la numa heroína. Winslet devolve-lhe a pergunta armadilhada: "Não me estaria a perguntar isso se não se sentisse moralmente comprometido relativamente à Hanna - e isso é bom. Cada espectador tem a sua própria opinião, e eu também, mas não a vou partilhar convosco... É demasiado fácil e redutor dizer que todas estas pessoas eram monstros. Uma das peças que mais ajudou na minha pesquisa foi ler o depoimento de um rapaz de 19 anos que foi obrigado a tornar-se guarda de campo para não acabar prisioneiro. Nenhum de nós pode saber realmente até onde a Hanna estava realmente ao corrente do que se passava. Nunca quisemos que o público simpatizasse com ela, seria até errado, mas o simples facto dos espectadores levantarem essa questão moral, isso sim, é interessante. Sugere-me que tomámos as decisões correctas. "

Daldry quis ter Winslet como Hanna desde o princípio, mas a actriz estava comprometida com "Revolutionary Road" para as mesmas datas, "e depois passou a ser o filme da Nicole" [Kidman, a segunda escolha do realizador]. "Mas mesmo depois disso, continuei a sentir que o projecto não se tinha ido embora de vez, e continuei a prepará-lo subliminarmente, como se soubesse que eu ainda ia voltar ao filme."

O sexto sentido de Winslet não a enganou: retida nas filmagens de "Austrália", de Baz Luhrmann, Kidman abandonou o projecto quando soube que estava grávida, e as novas datas de filmagem permitiram à actriz inglesa regressar a "O Leitor". Com o resultado de os dois filmes acabarem a "competir" entre si pelos desejados calendários de final de ano que são a primeira peça do puzzle das nomeações para os Oscares, levando a uma série de conflitos entre Daldry e Harvey Weinstein, ex-patrão da Miramax e co-produtor do filme, sobre a data de estreia.

Winslet não podia estar menos preocupada com isso - "por inacreditável que possa parecer, nunca ninguém nos informa do que está a acontecer até recebermos um telefonema de alguém do estúdio a dizer 'o filme vai estrear nesta data e precisamos de ti para fazeres imprensa a partir do dia tal'". E quanto aos Oscares, "não estou com expectativas nenhumas, porque já passei demasiadas vezes por isto para ainda acreditar que vai ser desta vez".

As "demasiadas vezes" são as anteriores cinco nomeações: duas como actriz secundária em "Sensibilidade e Bom Senso", de Ang Lee (ainda antes do "Titanic"...), e "Iris"; três como actriz principal em "Titanic", "O Despertar da Mente" e "Pecados Íntimos", de Todd Field. Mas continuam a não ser as honrarias que a atraem - se fossem, duvidamos que escolhesse alguns dos filmes que faz ("Romance e Cigarros"? Por favor!)

Um jornalista escandinavo, a esse propósito, vai buscar o episódio da série televisiva "Extras", de Ricky Gervais, em que a actriz com a sua própria imagem de actriz séria, no papel de uma freira que ajuda judeus durante a II Guerra, afirmando que fitas sobre o Holocausto são sempre boas para os Oscares. Winslet ri-se, e, antes de abandonar o salão, jura a pés juntos que obviamente não aceitou "O Leitor" por causa de um qualquer Oscar, nem acredita que, face à concorrência deste ano, tenha hipótese de ganhar.

E nós acreditamos nela - ou não fosse ela, como Stephen Daldry lhe chamou algumas horas antes, "a maior actriz da sua geração", num momento particularmente feliz da sua carreira. Os filmes estão aí para o comprovarmos.

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