A ópera impossível de Vítor Rua

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"Uma Vaca Flatterzunge" é a desmontagem da ópera e dos seus clichés. Sábado e domingo, em Lisboa.

"Num drama como 'Hamlet' do Shakespeare, aquela frase do 'ser ou não ser' é uma frase crítica. Milhares de actores disseram aquela frase. De que maneira vão ser originais? A minha ópera tem um 'ser ou não ser'". Quem vos fala é Vítor Rua, a propósito da sua ópera cómica "Uma Vaca Flatterzunge", que estreia amanhã na Culturgest, em Lisboa. Ópera cómica?

O compositor de 47 anos, co-fundador dos Telectu (com Jorge Lima Barreto), poliartista e experimentador incansável, desafia e desmonta agora a ópera contemporânea de vanguarda e os tiques da ópera tradicional num espectáculo de teatro musical multimédia que é "uma demonstração do impossível". Ser ou não ser ópera? Ou, na versão bem humorada desta "Vaca", "porque estamos assim a cantar desta forma ridícula?", como diz no início o cantor de vanguarda Pedro Lunático (em causa está o Pierrot Lunaire, de Schönberg), à soprano Vaquíria Barbérie (certamente próxima de uma das Valquírias de Wagner). Pedro Lunático canta em linguagem dodecafónica. Há ainda o Dr. Fuínha, um crítico reaccionário que canta sempre em cantochão, detesta o compositor e é apaixonado pela cantora.

O compositor incompreendido é O-Homem-Que-Ri, mas o próprio Vítor Rua, seu alter-ego, está em palco a conduzir os destinos pouco lineares desta ópera impossível.

Impossível? Porquê? Vítor Rua explica-nos: "Perguntaram-me: porque é que você não escreve uma ópera? E eu disse: 'Eu nunca hei-de escrever uma ópera.' 'Porquê?' E eu, de repente, em vez de responder, pus a mão no piano, dei um acorde absurdo e cantei: 'Porque estamos assim a cantar desta forma ridícula?' Tudo se começou a rir. Era um 'workshop' com compositores e músicos. E de repente disse assim: 'Eu tenho de fazer esta ópera, que vai demonstrar essa impossibilidade'." Então tornou-se possível o impossível? Vítor Rua explica-nos melhor o lugar onde situar "Uma Vaca Flatterzunge": "Existem grandes óperas contemporâneas. A ópera do Lachenmann é uma coisa fantástica, fabulosa. Ou a ópera do Sciarrino. O Sciarrino é o nosso Bellini. Eu disse-lhe isso e ele não se sentiu ofendido... Ou seja, existem pessoas a conceber ópera hoje, contemporânea, que elevam a ópera. Mas esta minha peça não é a tal ópera contemporânea de vanguarda, porque tem um outro intuito."

Que intuito é esse? "Desmontagem, é disso mesmo que se trata", diz o compositor. "Ao explicar e pôr em ridículo certos clichés da ópera contemporânea questiona as pessoas se adianta continuar por aqui. Não é só pôr em ridículo. Dar-me-á um gozo enorme se servir para pôr as pessoas a pensar", diz. Nesse sentido, é uma ópera "quase pedagógica".

Finalmente possível

Estamos a falar com Vítor Rua, e não com O-Homem-Que-Ri, o compositor na ópera. Mas o verdadeiro compositor também tem sentido de humor, e talvez sorria de contentamento por ver o impossível a fazer-se. É que "Uma Vaca Flatterzunge" foi criada entre 1999 e 2000, para a capital da cultura, Porto 2001, mas nunca chegou a ver a luz do dia até hoje, porque Ricardo Pais e Pedro Burmester, que estavam ligados ao projecto, deixaram as funções que tinham num período de "derrocada cultural", que Vítor Rua associa à saída de Manuel Maria Carrilho do Ministério da Cultura. A "antiópera" esteve depois para ser feita nos Açores e na Madeira mas, segundo o compositor, não foi feita "por causa de eleições". "Agora, sim, finalmente, graças à Culturgest e ao Miguel Lobo Antunes", diz Vítor Rua.

Mas até que ponto é esta "Vaca" uma anti-ópera? "Cada cena é uma crítica ou uma sátira ou uma amplificação da mediocridade ou da qualidade de estilos musicais e técnicas operáticas", diz o compositor e autor do libreto. Há, por exemplo, a crítica ao bel canto na cena um: "Hoje para mim não faz sentido o bel canto. Existe o microfone para uma pessoa poder sussurrar e ser ouvido num estádio - já não digo numa sala de concerto - e sobrepor-se a uma orquestra. Existe esse poder tecnológico." É também por isso que é "impossível" pôr outra vez os cantores a cantarem da mesma forma.

Flatter...quê?

"Flatterzunge" (técnica vocal em que a língua treme rapidamente) é uma daquelas técnicas "de vanguarda" alvo de gozo nesta ópera. Mas não é só o modo de cantar que é parodiado. Há sátiras à ópera tradicional, ao minimalismo ou à composição espectral. Na verdade, o compositor chega mesmo a transformar-se em compositor-espectro e muda de nome para Spectrum. Gozam-se ainda com as "línguas da ópera", "porque numa ópera tem de se ouvir alemão...", ironiza Vítor Rua.

Mas há muito mais do que música em "Uma Vaca Flatterzunge": "Há um cenário do Rui Chafes que é uma espécie de teia gigante. Quase tudo se formou a partir dessa peça central do Rui Chafes, os figurinos [Ilsa D'Orzac], a coreografia [Ana Borralho e João Galante], a luz, etc. Os figurinos são cenografia viva, os corpos deles é que vão formar mesas, objectos, etc. E o vídeo [Paulo Abreu] é uma entidade separada, que tem vida própria..."

O compositor promete ainda proporcionar às pessoas "uma experiência auditiva interessante - vai ser usada uma técnica de oito altifalantes (octofonia), de forma a criar uma espécie de vertigem". Além disso, escreveu a ópera a pensar em intérpretes específicos, seus amigos e colaboradores, como o saxofonista Daniel Kientzy ou John Tilbury (piano). Vítor Rua diz-nos que "nesta ópera há uma série de coisas que quase nunca" faz no seu "dia-a-dia de compositor." O uso de citações directas (será Mozart ou Thelonious Monk?), a electrónica ou a amplificação, por exemplo, são coisas raras na sua música. Mas aqui estão, nesta "Vaca" de riso dissonante, para rir e pensar o (im)possível teatro musical.

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