Laurent Cantet filma cenas da luta na classe

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A sala de aula, como nunca a vemos. O professor seduz, mas o professor cansa-se - e o aluno aborrece-se. O professor desce até à classe mas escorrega, cai, e o aluno aproveita. Este filme é um "match", e não há vencedores à vista. A escola é utopia e a escola é frustração. Os protagonistas do filme mais comentado de 2008 falam ao Ípsilon. A escolaridade é obrigatória? "A Turma", de Laurent Cantet, também.

François é o professor que o cineasta Laurent Cantet gostaria de ter tido. "Ou que eu gostaria de ser."

O realizador de "A Turma" encontrou-se num programa de rádio com um ex-rocker e ex-futebolista e crítico de cinema chamado François Bégaudeau, que promovia o livro "Entre les Murs", onde narra as suas experiências como professor de Francês num liceu multiétnico de Paris. Aconteceu em 2006, quando o livro gerava polémica em França - o "pedagogismo progressista" a que o professor dava corpo desencadeara acusações de "arrogância" e "cabotinismo".

 

Cantet queria filmar a escola como "reflexo do que se passa lá fora". E queria filmar adolescentes. Tinha já em casa uma cena escrita "de um conselho disciplinar", órgão que representa "o lado repressivo da escola".
"Apesar do que há de inteligência e de vitalidade numa sala de aula, uma escola é uma máquina de exclusão e o conselho disciplinar é uma encenação teatral dessa exclusão", conta ao Ípsilon - cenário da conversa: uma escola do 20º bairro de Paris, a Françoise-Dolto.
Cantet lera o livro de Bégaudeau, onde já era dado, "em pequenos toques", esse ritual de exclusão (um conselho de disciplina reúne-se para tratar do caso do aluno Souleymane), e esse eco com a cena que escrevera pareceu-lhe um sinal. Mas para além da coincidência... "Gostei logo da personagem do professor."

Este professor de Francês que Cantet descreve é, hoje, uma personagem de cinema. É o resultado da colaboração entre um cineasta e um autor que, tendo escrito sobre si próprio num livro, aceitou o desafio de se interpretar - de se ficcionar - num filme, "A Turma", que esta semana chega às salas.
Quer num caso, quer no outro (livro e filme), a utopia está de mãos dadas com a frustração, é nessa contradição entre optimismo e pessimismo que não se resolve a escola.

Num caso e no outro assume-se de forma trágico-cómica a perda: o professor esforça-se por seduzir, mas cansa-se; o aluno aborrece-se.
Num caso e noutro o professor é progressista, incute nos seus alunos a obsessão pelo domínio da língua; mas é ele, fatalmente, a cometer um deslize dizendo que duas alunas parecem galdérias.
Num caso e noutro, finalmente, há um convite à calma. É normal a escola não funcionar, só pode ser câmara de eco do que não funciona lá fora. Confissão lúcida ao Ípsilon de um ex-professor de Francês num café de Paris: "Há uma coisa absurda de fundo: a escola inventou uma situação que não corresponde em nada à forma como as coisas acontecem na vida. Na vida as pessoas aprendem quando querem, quando desejam ou quando têm necessidade. Ora, a escola decretou que se aprende assim [estala os dedos], sem querer. Isto não funciona."

Mas o professor François, que se esforça por seduzir os alunos, trabalho facilitado por tratar por "tu" Batman e "Missão: Impossível", cansa-se mais no livro do que no filme. É mais distante, mais exasperante (é mais cabotino). No livro os alunos são também mais "objectificados" - essa objectificação do mundo é o método do autor Bégaudeau, um puritano quando se trata de emoções evidenciadas. Já o filme abre hipóteses de identificação. Mas como diz Cantet, não se trata de traição: o cinema implica o corpo, o corpo leva à cumplicidade. Afinal, conclui o cineasta, tratou-se de trazer para primeiro plano e tornar mais eficaz "a base da pedagogia de François".
"É o próprio François que diz que não se pode transmitir conhecimento às crianças se não estamos ao nível delas. Para ele a sedução é parte do trabalho de um pedagogo e ele enfrenta os alunos no terreno deles. Há sempre interpelação. Às vezes cansa-se. É natural: ser professor é estar sempre a improvisar, é-se sempre solicitado. Não pode haver silêncio: se os alunos sentem dúvida, deixam de respeitar. François dizia na rodagem: 'O meu professor tem de estar em forma fisicamente.' O mais belo é que ele não desiste. Perguntam-lhe se ele é homossexual." (É o tal aluno Souleymane que pergunta, a desafiar.) "Alguns professores resolveriam a questão: 'Vamos acabar com isso.' Mas ele olha o aluno de frente, leva-o a reflectir sobre a homofobia. François gosta do confronto, porque pensa que por aí se pode avançar. Tem algo de enervante, mas ele é assim na vida. Não é um modelo, é alguém que falha, que cai em ratoeiras. Esta é uma profissão em que é preciso empenho total, mas não apenas através de ideias de pedagogia. É também uma forma de empenho com o corpo, como nos posicionamos na aula, como colocamos a voz."

Bolas de um lado para outro

E é por aí que "A Turma" é um milagre: o cinema de Cantet encontrou um método para traduzir esse empenho do corpo e esse conflito da democracia - se preferirmos a dessacralização, tiramos a palavra "milagre" e dizemos: "A Turma" é um filme de uma eficácia vertiginosa.
A primeira ideia foi escolher os actores de entre verdadeiros alunos e professores, como corolário do trabalho do realizador com não profissionais em "Recursos Humanos" (1999) e como nostalgia da liberdade experimentada numa curta, "Tous à la Manif" (1994), que rodou com estudantes de liceu.
Cantet bateu à porta da primeira escola que encontrou e lhe parecia representativa da diversidade étnica e social francesa, a Françoise-Dolto. "Surpreendentemente o reitor e toda a Academia interessaram-se pela experiência de organizar um atelier com os alunos para encontrar os actores e as personagens do filme."

Durante o ano anterior à rodagem, às quartas-feiras, 50 alunos improvisaram uma aula com Cantet, com o seu argumentista Robin Campillo e com o professor François. Foi processo de "casting" e fase de escrita de argumento.
"Já não sei se foram os actores que criaram as personagens ou se foram as personagens que nos levaram aos actores", recorda o realizador. "Numa aula não se escapa aos arquétipos: há o que fala muito, o que está ao fundo da sala a resistir, o palhaço... Ao constituirmos o grupo, encontrámos logo as personagens. Mas alguns actores criaram as suas personagens. Por exemplo, Wei, o jovem chinês.

 Inspira-se no Ming do livro, mas Ming era um rapaz com medo de falar, não falava bem francês, e Wei é um falador - tivemos de lhe dizer: 'Cala-te, tens de te parecer com Ming.' Ora, Wei é mais interessante que Ming, decidimos então que Wei iria tornar-se a personagem do filme. Já Esmeralda na vida real é como aparece no filme: adora uma boa discussão. Precisávamos de alguém assim. Mas Souleymane é um rapaz de uma doçura incrível. Não tem nada a ver, nem na forma como se veste, com a personagem do filme. Não fizemos formação de actor, pusemo-los à vontade, ouvimos o que eles tinham para dizer. Depois organizámos tudo. Começámos a trabalhar com 50 alunos, acabámos com 24, mas não eliminámos ninguém: houve quem se interessasse e quem desistisse."

Quando se tratou de filmar, do futebol passou-se ao ténis. Explicamos: François Bégaudeau jogou futebol, é fanático do jogo, de que se socorre para mostrar a sua visão do mundo. O livro é um "match": alunos contra professores. Cantet aderiu à metáfora. Mas o filme sente-se como partida de ténis.
O jogo é coisa democrática, de um lado professor, do outro aluno, assim a partida foi organizada: "A decisão de filmar em vídeo de alta definição, com três câmaras, uma sobre o professor, outra sobre o aluno que fala e outra para apanhar pormenores, foi tomada para captarmos a energia de cada cena. Para não sermos obrigados a dizer 'corta' e a interromper para fazer um grande plano, voltarmos ao princípio, etc... Durante a rodagem arriscámos a improvisação, uma improvisação dirigida: 'Tu vais dizer isso, quando tu dizes isso, tu dizes aquilo...' eram as referências a partir do que tinha sido desenvolvido no atelier. Filmámos numa sala quadrada, com um corredor técnico a delimitar o espaço para a câmara, para o som e para mim. Isso dá a imagem de um 'match' de ténis filmado, todos estão ao mesmo nível - a imagem do ténis é justa, porque se trata de bolas que se mandam de um lado para o outro."

Nesse dispositivo que anula a posição dominante do realizador (essa é uma das dinâmicas do cinema de Cantet), o professor François teve papel decisivo: "Foi um vigilante: 'Eu não diria isso' ou 'Espantar-me-ia que algum aluno dissesse isso'. Era a garantia da justeza. Líamos as frases que eu gostaria que se ouvissem, e depois ele era um duplo no interior da cena. E fazia o que faz um professor: guiar os alunos." (O filme investiu o professor de mais controlo do que no livro, onde François é um narrador em perda: "Como eu conhecia a cena", confirma Bégaudeau, "era a mim que cabia dar a palavra. É um luxo ter alguém na cena a dar a palavra a outra personagem e eu tinha esse direito, era eu o professor. Era um duplo do realizador...").
Cantet continua: "Filmar em vídeo de alta definição, com o dispositivo que montámos e com uma estrutura leve, foi decisivo: interessou-nos captar, em vez de construir, o que se passa num sistema fechado.

Interessou-nos mostrar coisas que não vemos habitualmente. Num debate em França um estudante, depois de ver 'A Turma', confessou que era a primeira vez que via professores a falarem uns com os outros. Isso tocou-o. E ele está a passar uma parte da sua vida dentro daquele sistema. Para aqueles que não o conhecem, o filme dá ainda mais informação. É um sistema contraditório. Há coisas formidáveis. Outras terríveis."

Solitários

Na escola em que falamos com Cantet - não foi a escola onde o filme foi rodado, porque o edifício estava em obras; foi a escola de onde saíram os alunos/actores - há "posters" nos corredores a anunciar a estreia francesa. Afinal, os actores "moram" ali. Em Maio, nos dias seguintes à Palma de Ouro de Cannes que levou uma turma, um realizador e um professor para cima do palco do Palácio dos Festivais, as câmaras de TV e os jornalistas precipitaram-se para a Françoise-Dolto. Houve euforia patriótica - "A Turma" foi a primeira Palma de Ouro para um filme francês depois de "Sob o Sol de Satanás", de Maurice Pialat (1987) -, fetichização cinéfila - estabeleceram-se ligações entre a vibração do real no cinema de Cantet e Pialat, cineastas de temperamento diferente mas não dispostos a alienarem a liberdade em favor da indústria ou da cinefilia - e o turbilhão mediático da cultura televisiva tipo Chuva de Estrelas, ou a versão francesa, Star Academy.

"Houve motins para conseguirem declarações deles. Mas agora, controlámos as coisas. Tentámos avisá-los dos perigos de Cannes, do 'glamour', e restringimos as possibilidades de acesso a eles", diz Cantet. E o "efeito Palma" no trabalho do cineasta? "Provavelmente terei menos dificuldades na montagem de um próximo projecto", mas para já é um périplo implacável de promoção que o faz atravessar a Europa e cruzar o Atlântico. Até dá para fantasiar com uma versão americana de "A Turma".

Tempo para ver filmes não tem. "Não sou cinéfilo inveterado, quando filmo não penso em outros filmes, não me inspiro numa história de cinema, nem penso na minha, nem penso nos meus anteriores filmes." Mas perguntamos-lhe se existe algo em comum entre o professor de "A Turma", o jovem que vai trabalhar para uma fábrica em "Recursos Humanos" ou o homem que, por pânico de entrar no mundo do trabalho, anula radicalmente a sua existência ("O Emprego do Tempo"). "São personagens que procuram o seu lugar num grupo, no mundo. São muito solitárias face ao grupo. François também está só: é o único adulto num grupo de adolescentes. São personagens conscientes das suas dificuldades de existir. O professor deste filme é um misto contraditório de quem acredita e de quem não acredita - essa é a contradição da escola."

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