Karley Aida: A vida dela dava mais do que um livro

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Aida usava perucas louras ou escuras e uma maquilhagem bem carregada DR

Nos últimos tempos, Karley Aida tem andado numa lufa-lufa - sessões de autógrafos, entrevistas em programas televisivos e telefonemas de pessoas que alegam ser "da família". Poucos dias depois de ter estado no programa Você na TV, da TVI, recebeu mais um telefonema. "Dizem que são meus primos. Vamos lá ver...", diz, dirigindo-se a um casal que viajou propositadamente do Algarve e que está sentado numa mesa da esplanada do café da Junta de Freguesia de Carnide, em Lisboa.

Regressa minutos depois. "Parece que são mesmo. Mas já vou falar com eles. Agora converso consigo um bocadinho", diz esta mulher de 66 anos, cabelo branco e levemente ondulado, olhos vivos e sardas no rosto.

Os dias mais atarefados e estas súbitas aparições de familiares desconhecidos têm uma razão: a publicação de Karley Aida, o circo, a vida, biografia escrita pela socióloga Fátima Freitas, focou novamente os holofotes sobre a artista. Em 118 páginas, o leitor é convidado a conhecer uma vida singular, feita de "rupturas e recomeços", descreve a autora, e a recuar a um tempo em que o circo reinava no mundo dos espectáculos.

No meio da arena está Karley Aida, que, ainda a conversa está no início, dispara: "Tenho o corpo cheio de cicatrizes." Não admira. Ao longo de várias décadas foi trapezista, ilusionista, palhaço, contorcionista, domadora de leões, amestradora de pombas, actriz, professora, agente artística, cantora, animadora de programas televisivos e grupos musicais.

A ideia de contar a sua história tinha mais de dez anos. Nos primeiros anos da década de 90, um jornalista quis publicá-la em livro, mas morreu antes de concretizar o projecto. Karley "esmoreceu", mas não deixou de passar para o papel pedaços soltos das suas recordações. No ano passado, Karley, que vive desde 1981 no Parque dos Artistas, em Carnide, numa velha caravana que comprou em Inglaterra em 1966, decidiu entregar ao coordenador cultural da junta de freguesia, João Oliveira, tudo aquilo que tinha escrito. "Quero publicar as minhas memórias", disse-lhe. O autarca deu a ler os papéis a Fátima Freitas, que ali descobriu "força, determinação, um lado um pouco selvagem e indomável, uma pulsão vital".

Seguiram-se quatro conversas com a artista e a recolha dos testemunhos que fecham o livro. Bastou um mês e meio à autora para escrever Karley Aida, o circo, a vida, editado pela Junta de Carnide por iniciativa do seu presidente, Paulo Quaresma.

Concluído o livro, Karley foi a primeira leitora. Conta Fátima que a artista lhe telefonou perto das sete da manhã: "Disse-me que eu tinha feito poesia de uma vida que tinha sido tão crua."

As irmãs equilibristas

Lê-se nesta biografia que a vida circense não surgiu "circunstancialmente" na vida de Karley Aida, mas que se "impôs" de forma "incondicional" - a 14 de Maio de 1942, Aida Correia Félix nasceu debaixo das bancadas da tenda que albergava o Circo Félix, dirigido pelo seu pai, Vítor Félix.

A mãe, Ana Correia, fazia de tudo um pouco no negócio familiar - cantava, fazia acrobacias e equilíbrio de copos -, mas um dia fugiu dos maus tratos do marido. Tentou rever as filhas que deixara para trás, Aida, com três anos, e Teresa, um ano, mas o marido impediu que isso acontecesse. Aida só voltou a reencontrar a mãe quatro décadas depois. Mas sobre esse episódio preferiu não falar. No livro, lê-se apenas que a artista descobriu uma "mulher mentirosa e interesseira", que tentara uma aproximação para a "usar".

A relação de Aida com o pai nunca foi saudável. A agressividade de "Caracol", assim era conhecido no meio artístico, transferiu-se para a filha mais velha, a quem vaticinava uma vida miserável.

No Circo Félix, Vítor era acrobata, comediante, palhaço, amestrador e ilusionista. Mas foi o seu número de travesti (estreado em 1942) que mais fama e polémica lhe granjearam. As variedades eram, então, uma das componentes do circo, onde também cabiam actuações de fadistas e sessões de boxe.

No mesmo ano em que a sua mãe deixou o lar, Aida estreou-se em palco. Apresentada como Miss Aidinha (vestidinho branco e dois laços no cabelo), fazia equilíbrios nas mãos do pai. Por essa altura, Vítor começou a ensinar-lhe contorcionismo em cima de cadeiras. E aos nove anos Aidinha e a sua irmã Teresa, de sete, eram já uma das sensações do Novo Circo Félix (assim denominado depois de um incêndio que destruiu o chapitô), brilhando ao lado do pai na arte do charibari (volteios acrobáticos, na gíria circense).

O Novo Circo Félix não teve, porém, longa vida. As chamas voltaram a reduzir a cinzas toda a estrutura e, desta vez, a família Félix e a dezena de artistas que compunham o circo ficaram sem tecto. Não lhes restou outra alternativa senão recorrer à vida de saltimbancos, calcorreando as feiras do país. As pequenas equilibristas então conhecidas como Irmãs Aida actuavam nas ruas e, relembrou Karley, depressa houve quem reparasse na destreza de ambas em rolo de cilindro giratório e contorção.

A fuga de Teresa e Pierino

Em finais da década de 50, o Coliseu dos Recreios, em Lisboa, era a grande catedral do circo. Américo Covões era o seu proprietário. Depois de assistir a uma exibição das Irmãs Aida numa rua do Lumiar, Covões não teve dúvidas de que a dupla podia integrar o alinhamento de artistas que passava pelo Coliseu. Aida e Teresa firmaram, então, o seu primeiro contrato artístico (ganhavam 100 escudos por mês) e a boa recepção do público garantiu-lhes actuações nas temporadas das grandes enchentes - Natal e Carnaval.

Aida estava quase a completar 20 anos quando aconteceu a internacionalização das Irmãs Aida. A estreia deu-se em San Adrián, perto de Barcelona, no circo dirigido pelos catalães Amarós e Silvestrini, que convidaram as irmãs para rumar a Espanha com vista a repetir o sucesso do Coliseu lisboeta.

Vítor Félix seguiu-as - era o "agente" da dupla, contou. Mas as irmãs estavam prestes a libertar-se de um pai dominador e violento. Teresa perdeu-se de amores por um artista italiano e não pensou duas vezes quando Pierino lhe propôs fugir.

Aida ajudou a irmã na fuga, mas acabou por colher a ira do pai. O que Vítor não imaginava era que a sua filha mais velha fosse capaz de denunciá-lo à polícia. O resultado: Félix foi deportado e Aida preparou-se para dar continuidade à sua carreira, agora sozinha. Mas não por muito tempo.

Com o pai em Portugal, Teresa e Pierino voltaram para junto de Aida e as irmãs retomaram a dupla artística, tendo chegado a vencer o Festival Internacional de Circo de 1963, na Hungria.

As Irmãs Aida só acabaram quando Teresa engravidou (teve seis filhos e hoje é responsável pelo guarda-roupa do Circo Mundial, de Espanha, conta a irmã mais velha). Tinha chegado a hora de Aida saber se realmente poderia prosseguir sozinha no circo. Acabara de fazer 21 anos.

Aida precisava da ajuda de alguém do meio artístico. Pediu auxílio a uma cantora que interpretava velhos êxitos mexicanos, aprendeu rapidamente diversas toadas sul-americanas e, pouco tempo depois, acompanhou a intérprete numa temporada de um mês nas Ilhas Baleares.

No regresso a Barcelona, esperava-a o convite para cantar no teatro Oásis de Saragoça. E aqui começaram as histórias das substituições - durante vários anos, Aida conseguiu trabalho porque aprendia depressa e era tida como a "faz-tudo" (ainda hoje é assim, garantiu), o que lhe permitiu substituir algumas vedetas. Em Saragoça, foi ela quem "salvou" o espectáculo da companhia circense onde trabalhava ao propor-se para substituir uma cantora que adoecera. Pormenor: cantava seminua. Usando perucas louras ou morenas, e com uma maquilhagem bem carregada, Aida usava somente um disco grande de penas a tapá-la.

A sensualidade da jovem mulher e a voz melosa que entoava sucessos espanhóis e latino-americanos originaram convites para digressões em Espanha. Foi numa dessas viagens, a França, que Aida conheceu Grumann, o "homem bala" alemão que trabalhava num circo russo.

Namoraram pouco tempo e casaram-se no dia em que ela completou 22 anos. Antes do enlace fez exames médicos que atestaram a sua virgindade e enviou os resultados ao pai. "Casei de branco e virgem (...). Esta era a bofetada que daria ao meu pai pelos maus tratos", disse, citada na biografia.

A felicidade matrimonial, porém, durou pouco tempo. Seis meses depois do casamento, num espectáculo circense em Estugarda, Grumann morreu - um erro na mira do canhão disparou o "homem bala" para o lugar errado. Grumann caiu em solo aberto, a cerca de 60 metros da tenda, e não resistiu aos ferimentos da queda. Aida ficou viúva com a mesma idade com que se casara.

Na jaula dos leões

Decidiu regressar a Espanha, onde sempre a acolheram bem, mas a falta de trabalho e uma boa dose de ingenuidade encaminharam-na para o Norte da Europa. Assinou um contrato julgando tratar-se de um vínculo laboral para um circo finlandês, mas aquilo que encontrou na Finlândia era outra espécie de "entretenimento", diz: clubes nocturnos e trabalho de "acompanhante".

Não foi com facilidade que Aida conseguiu livrar-se desta armadilha - no livro contam-se vários episódios um tanto ou quanto burlescos. Sublinhe-se apenas que tudo acabou com uma valente tareia ao seu "agente finlandês" depois de este lhe ter apresentado a "alternativa" de "trabalhar" no tráfico de droga.

Aida regressou a Barcelona na esperança de voltar ao circo. Mas o único sítio onde conseguiu trabalho - uma actuação de hora e meia que incluía canções, ilusionismo, malabares e perda de roupa - foi numa casa de alterne. "Nunca me quis confundir com aquele ambiente", afirmou. Por isso, não desistiu de procurar trabalho no circo e em finais de 1966 conseguiu assinar um contrato com o Circo Kinny, então instalado na Suíça.

Cedo percebeu que ali teria de começar do zero - limpava as jaulas dos animais, cuidava dos cavalos, dormia nas cocheiras, lembrou. O facto de saber montar a cavalo valeu-lhe a possibilidade de substituir uma artista que sofrera uma queda e que se lesionara. A actuação correu bem e os directores do Kinny deixaram-na substituir alguns artistas em apresentações com ursos, cavalos, elefantes e leões. Com estes últimos a coisa não correu como desejava.

A hipótese de se transformar em domadora de leões foi-lhe dada em reconhecimento da sua coragem: Aida salvou Anthony Kinny, o domador, das garras de um leão que o atacara, entrando destemidamente na jaula e empunhando apenas um ferro de dois bicos.

Ferido o domador, Aida ofereceu-se para o substituir. E preparou-se em apenas duas semanas e meia. Mas durante uma exibição um dos leões atacou-a com as garras. Karley Aida não interrompeu a representação. Mas quando terminou o número teve de ser levada para o hospital - foi suturada com 11 pontos. O revés não a fez esmorecer. Intérprete versátil, trabalhou no Kinny mais três anos, actuando em todos os cantos do mundo.

Um voo contra as bancadas

Findas as digressões mundiais, e com algum dinheiro no bolso, Aida retornou para junto da irmã, em Espanha. Tinha 29 anos e desejava alargar a sua carreira artística ao mundo da música ligeira. Queria protagonizar um "show moderno", "acrobático e sexy", tal como vira nos Estados Unidos.

Com um punhado de canções espanholas, estreou-se no Escorpion, sala de espectáculos em Valença. O show teve sucesso e Aida foi convidada para participar em festivais da canção. Como te estraño mi amor foi o tema com o qual venceu o primeiro festival a que concorreu, em Itália. Seguiram-se mais participações em eventos semelhantes e uma digressão por várias salas espanholas. Karley Aida, a cantora, era conhecida em todo o país e a sua voz começava também a chegar à América Latina.

Tudo corria bem até ser desafiada a substituir uma trapezista na companhia Berlin Circus. O convite era tentador: um contrato de seis meses e uma temporada no México com os famosos acrobatas Caone. Aida aceitou.

Ao fim de quatro meses de actuações no trapézio, Aida caiu literalmente numa nova tragédia. Quando se ofereceu para substituir uma trapezista inglesa que fazia o número com o marido, não podia imaginar que estava a salvar a vida da mulher e quase a perder a sua.

O homem subiu ao trapézio já bêbedo e, confundindo Aida com a mulher (Karley usava o mesmo vestido da inglesa), agarrou-lhe as mãos, tomou novo balanço e projectou-a contra as bancadas. O rescaldo foi terrível: quatro mortos, 15 feridos e danos irreversíveis na saúde da artista. Esteve internada muito tempo, foi submetida a cirurgias e só alguns anos depois conseguiu subir novamente a um trapézio.

Já restabelecida do acidente, Aida decidiu retomar a carreira de cantora. Fê-lo ao longo da década de 70 no Peru, em Porto Rico, na Colômbia, em El Salvador, no Chile, na Argentina e na Nicarágua, actuando em hotéis com diversos grupos musicais: Karley Aida e Los Caporales, Karley Aida e Angelines, Karley Aida e Dorys America, Karley Aida e Los Rossieros de Hueva.

Quando regressou a Espanha vivia o seu período dourado - gravou discos, cantou em palcos de todo o país, transformou os temas Solo tu e Todos juntos em êxitos comerciais. E um novo amor aparecera na sua vida.

O "artista da panela" Chamava-se Lollo e era conhecido como o "artista da panela" devido aos seus atributos na cozinha do Circo Atlas. Viveram juntos 12 anos. Mas várias desavenças ditaram o fim da relação - Lollo não gostava de Vítor Félix (que a artista reencontrara em Portugal volvidos 25 anos); Aida recebeu uma carta de uma mulher que alegava estar grávida do cozinheiro; e, finalmente, o cozinheiro acabou a "viver com outro homem".

Um convite para se apresentar no Coliseu dos Recreios, lugar onde se estreara com a sua irmã, trouxe-a de volta a Lisboa. Mais precisamente para o Parque Residencial dos Artistas de Circo, em Carnide, espaço camarário inaugurado em 1980 e que hoje está muito longe do seu projecto originário.

No Coliseu, Karley decidiu recomeçar a sua carreira em Portugal, com canções, ilusionismo e um famoso número de pombas amestradas. Ainda trabalhou em dois circos, mas "pagavam mal" e ela estava "muito cansada".

Em 1982, preocupada com a quantidade de artistas de circo que estavam desempregados, avançou com a criação de uma cooperativa - nesse mesmo ano, nasceu o Circo Paz e Amor. Mas Aida gastava mais do que recebia e a cooperativa foi dissolvida um ano depois.

A artista não baixou os braços e "agarrou-se" a diversos trabalhos: fez teatro; foi actriz e figurante em filmes; foi professora de técnicas circenses no Chapitô ("passaram pelas minhas mãos a Trupe Hilariante e o Batata & Companhia); organizou um grandioso espectáculo na Aula Magna para premiar os artistas de circo nacionais, em 1990; fundou em 1994 a AssoCirco (Associação Artística Circense), da qual é presidente; colaborou em programas televisivos (quatro anos no Batatoon e dois anos no Cabaret da Coxa); fazia animações nas actuações ao vivo dos Ena Pá 2000 e dos Irmãos Catita; e há cerca de cinco anos ajudou a fundar uma escola para profissionais do circo, A Tenda - Palhaços do Mundo.

Entre aparições pontuais em espectáculos e na televisão, Karley Aida ocupa agora o seu tempo no Instituto de Desenvolvimento Social, onde dá formação de animações de rua.

O pai, Vítor Félix, morreu em 2002; a irmã, Teresa, vive em Espanha. Karley continua a ser uma das habitantes mais famosas do Parque dos Artistas. E garante que nunca se reformará do circo - "acha que já estou reformada do circo?", pergunta. As pombas amestradas, essas, voaram das suas mãos em Novembro de 2007. Vendeu-as a uma futura artista do Circo Royal: uma menina de oito anos a quem ensinou o número das "pombas da paz".

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