Sydney Pollack: Ele era Hollywood

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Pollack tinha cancro há dez meses Jean Paul Pelissier/Reuters

Teve três vidas no cinema – foi actor, produtor e realizador – e usou-as todas contra ele e a favor de Hollywood (era aquilo em que ele acreditava, mesmo quando já ninguém acreditava em Hollywood). Não foi só um realizador que se abateu, anteontem. Há uma certa maneira de fazer filmes que também não sai daqui viva.

Sydney Pollack nunca soube muito bem o que aconteceu para o cinema se ter abatido sobre ele, um smalltown american de segunda geração com uns óculos demasiado grandes e uns pais demasiado judeus, e agora somos nós que também não sabemos muito bem o que aconteceu para ele se ter abatido, anteontem. O realizador norte-americano – não dizemos o realizador de África Minha porque ele foi muito mais do que isso – morreu em casa, num subúrbio de Los Angeles, aos 73 anos. Sabia que tinha cancro há dez meses, mas os médicos nunca descobriram de onde vinha.

Ele vinha daí, de uma América que não estava nem nunca tinha estado em grande: Lafayette, a cidade do Indiana onde nasceu em 1934, “era um verdadeiro deserto (...) muito anti-semita” onde não havia “muitos judeus” como eles, disse em 2002 numa entrevista ao "The Guardian". O pai era farmacêutico porque não tinha tido dinheiro para o curso de Medicina e teve de ficar por ali (também era pugilista semi-profissional, coisa que ele nunca poderia ter sido: “Eu só via os socos quando eles já estavam demasiado perto”), a mãe tornou-se alcoólica depois do divórcio e acabou por morrer quando ele tinha 16 anos. Nessa altura, Sydney Pollack já sabia o que queria ser na vida: actor. Teve essa vida e teve mais duas, como produtor e como realizador. Usou-as todas a favor de Hollywood, e de uma maneira antiquada de fazer cinema em que acreditou até ao fim, apesar de todos os sinais de um certo fim dos tempos: “O meio termo desapareceu. Mas não é impossível fazer filmes mainstream realmente bons. Como disse uma vez o Costa-Gavras: os acidentes podem acontecer.”

Ele teve vários acidentes desses: os filmes de Pollack, dizia ontem Michael Cieply no obituário do "New York Times", “serviam o comércio sem abandonar totalmente a ideia de uma arte cinematográfica”. Nunca fez filmes fora de Hollywood, mas mesmo dentro de Hollywood (com os meios de produção de Hollywood e com as estrelas de Hollywood: trabalhou com Burt Lancaster, Natalie Wood, Jane Fonda, Robert Mitchum, Al Pacino, Barbra Streisand, Dustin Hoffman, Meryl Streep, Tom Cruise, Harrison Ford, Nicole Kidman e, evidentemente, Robert Redford) fez os filmes dele, não os filmes da indústria: “Quando se tem uma carreira como a minha, tão identificada com Hollywood, com os grandes estúdios e as grandes estrelas, é inevitável que uma pessoa se pergunte se não devia ir à sua vida e fazer aquilo que o mundo considera filmes pessoais. Mas eu acho que enganei toda a gente. Eu sempre fiz filmes pessoais – só que os fiz noutro formato.” O formato dele não tinha as pretensões iconoclastas que teve o trabalho da geração seguinte – a geração de Scorsese, Coppola e Spielberg, depois da qual tudo mudou: ele adorava-a ao ponto de ter O Toiro Enraivecido e O Padrinho como filmes de cabeceira, mas não fazia parte dela – tinha preocupações que eram ao mesmo tempo comerciais e autorais: “Como realizador, tenho primeiro de satisfazer as necessidades de uma arte popular e tenho depois de levantar questões que sejam suficientemente intrigantes. Não quero que os meus filmes sejam intelectualmente insultuosos.”

Não eram. Coisas como O Nosso Amor de Ontem (1973), Tootsie – Quando Ele era Ela (1982) e sobretudo África Minha (1985) tornaram o cinema dele suficientemente relevante – mais do que suficientemente intrigante – para o grande público, e coisas como Os Cavalos Também se Abatem (1969), As Brancas Montanhas da Morte (1972), Os Três Dias do Condor (1975) e A Calúnia (1981) tornaram o cinema dele suficientemente relevante para a crítica, como sublinhou a ensaísta Jeanine Basinger ao "Los Angeles Times": “Fez alguns dos filmes mais influentes e mais memoráveis das últimas três décadas. Tinha uma sensibilidade política muito aguda e um profundo sentido do que estava em jogo a cada momento; sabia quais eram as questões a que o cinema tinha de dar resposta. E avançou e mudou à medida que o mundo avançou e mudou, não ficou fechado e engavetado numa década.” Mas Pollack não tinha só esse sentido do tempo que fez a política dos cineastas liberais das décadas de 60 e 70 (Nixon, o Watergate: era uma boa altura para teorias da conspiração, e para homens sozinhos contra o sistema). Tinha também uma coisa que já na altura estava em desuso, e que explica parte do cinema dele: uma ligação sentimental à tradição romântica do cinema clássico americano (foi por isso que o vimos tantas vezes a fazer melodrama, e a citar explicitamente o Billy Wilder de Sabrina no remake de 1995, e implicitamente o Michael Curtiz de Casablanca, que foi sempre o seu filme favorito, em Havana). Sem realizadores como ele, que tinha essas coisas na cabeça e além disso “sabia domar as estrelas”, o sistema de Hollywood não teria saído vivo dos anos 60.

Realizador de actores

Sydney Irwin Pollack nasceu a 1 de Julho de 1934 em Lafayette, no Indiana, uma das partes da América que se foi mais abaixo com a Grande Depressão. Os pais, descendentes de judeus russos, não tiveram dinheiro suficiente para que ele fosse médico ou dentista, como estava planeado – nem ele quereria. O teatro era a vida dele desde a escola secundária – e quando chegou a altura de ir para a universidade disse ao pai que preferia matricular-se na Neighborhood Playhouse School of Theater. Nunca se tinha sentido no centro de coisa nenhuma até chegar a Nova Iorque e conhecer o lendário Sanford Meisner, que lhe ensinou tudo o que sabia sobre actores – e sabia muito. Mesmo quando realizava, realizava como actor, coisa que só não foi a tempo inteiro porque Burt Lancaster não quis. Conheceram-se nas filmagens de The Young Savages – foi um daqueles acidentes. “Eu passava o tempo a tentar esconder-me e desaparecer da vista dele. Mas o Lancaster não me largava. Gozava comigo, tentava envergonhar-me à frente de toda a gente – ele era uma grande estrela, um homem que metia medo. Mas começámos a falar, ele interessou-se por mim e quando as filmagens terminaram chamou-me ao escritório dele e perguntou: 'Porque é que andas a tentar ser actor? Devias ser realizador’.” Lancaster tinha friends in high places e apresentou-o Lew Wesserman, na altura um dos maiores operadores da indústria do entretenimento. Pagava 75 dólares por semana para Sydney Pollack ficar calado a ver como se fazia. Depois entregou-lhe a série televisiva Shotgun Slade para ver como é que ele se saía – saiu-se tão bem que deixou de ser actor (mas não para sempre). “Eu sabia que nunca ia ser um grande actor. Com a minha cara, ia ser sempre o amigo do amigo”, comentou em 1993 numa entrevista.


De 1965, o ano da primeira obra (The Slender Thread), a 2005, o ano da última (Sketches of Frank Gehry, que por cá passou no penúltimo Fantasporto), Sydney Pollack fez 20 filmes e teve dezenas de nomeações da Academia (nove para Os Cavalos Também se Abatem, dez para Tootsie, onze para África Minha, que lhe deu finalmente os Óscares de melhor filme e de melhor realizador). Continuou sempre a achar que não era um grande realizador: “De cada vez que decido voltar a filmar, pergunto-me que raio estou eu a fazer. É como bater com um martelo na minha própria cabeça”, disse em 2005 à Entertainment Weekly. Não pensava grande coisa dele próprio, ao contrário dos actores que trabalharam com ele – e sobretudo de Robert Redford, com quem fez filmes “aos 30, aos 40 e aos 50”. Ontem, Redford mandou um mail ao New York Times que dizia isto: “Conheço o Sydney há 40 anos. A nossa relação é uma coisa demasiado pessoal para exprimir num soundbite.” George Clooney, que contracenou com ele há um ano em Michael Clayton, foi menos lacónico: “O Sydney tornava o mundo um bocadinho melhor, os filmes um bocadinho melhores e até o jantar um bocadinho melhor. Vamos sentir terrivelmente a falta dele.”

Nos últimos anos, e sobretudo depois do fracasso de Havana, Sydney Pollack foi cada vez menos realizador e cada vez mais actor (entrou em Maridos e Mulheres, de Woody Allen, O Jogador, de Robert Altman, e De Olhos bem Fechados, de Stanley Kubrick) e produtor (fundou a Mirage Enterprises em 1985, com Anthony Minghella, que também morreu este ano). A última coisa que dirigiu foi um documentário sobre Frank Gehry que ao mesmo tempo também era um documentário sobre aquilo que ele nunca foi: “Nunca teria tido a coragem de fazer no cinema o que o Gehry faz na arquitectura. Ele quebrou todas as regras, eu sou muito mais cobarde. Não me considero um realizador vanguardista, nem sequer um realizador particularmente original. Nunca pensei que ia reinventar o cinema.”

Não o reinventou – mas para isso houve outros. Para fazer o que ela fazia é que talvez não haja mais nenhum. “Pollack era um dos últimos, um dos melhores, representantes do studio system de Hollywood – um cineasta da velha escola que encontrou uma maneira de vingar lado a lado com os realizadores da nova Hollywood que chegaram ao cinema americano na década de 70”, dizia ontem o crítico Xan Brooks no blogue de cinema do "The Guardian". É essa a ideia: modéstia à parte, Sydney Pollack não fazia parte de Hollywood. Em certo sentido, ele era Hollywood.

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