Já há formigas no fim do mundo

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Uribe diz que basta olhar para os glaciares para perceber os feitos das alterações climáticas Enrique Marcarian/Reuters (arquivo)

O tom grave parece demasiado solene para a frase que se solta: "Já há formigas em Ushuaia." Ricardo Uribe olha fixamente para o horizonte, contrai os músculos da cara e põe as mãos em riste em sinal de catástrofe anunciada. Depois sorri, diz que os "senhores do mundo" têm de pensar nisto. Até porque "isto" não é uma analogia com objectivo fútil. "É urgente que se saiba, já temos formigas no fim do mundo." O rodapé do sound-byte poderia ser: Fevereiro de 2008, o alerta ecológico de um antropólogo, Ushuaia, Terra do Fogo, Argentina, fim do mundo.

Buenos Aires está a 3100 quilómetros, a Antárctida a 1000. Os efeitos das alterações climáticas mesmo ali ao lado, quando não dentro de casa, através da inédita visão dos insectos que até há poucos anos fugiam da temperatura deste extremo do hemisfério sul. Captado o contexto, o tom e o conteúdo do discurso ganham sintonia. E Uribe, o antropólogo, avisa que essa é só uma parte da história, apenas um primeiro sinal. "Basta olhar para os glaciares para se perceber o resto." O resto já foi exposto ao mundo em forma de prognóstico pelo Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática (IPCC na sigla em inglês): até 2100 a temperatura média anual no mundo pode aumentar entre quatro e quase seis graus.

Ushuaia está encafuada entre o braço de mar do Canal Beagle e uma imensidão de montanhas. Ali bem perto começa, ou acaba - no fim do mundo as duas leituras são sempre aceitáveis -, a cordilheira dos Andes. Há muitas máquinas fotográficas, algumas estupefacções. De qualquer parte da cidade consegue ver-se a ponta branca do Glaciar Martial. Carla Fulgenzi diz que aqui o cliché "a tradição já não é o que era" faz sentido. "Há uns anos, mesmo nestes meses de Verão, o glaciar estava coberto por um enorme manto de neve gelada, agora vê-se apenas um pedaço." A jornalista e activista de direitos humanos largou Buenos Aires há 20 anos. Fartou-se do bulício. E que melhor lugar para recomeçar do que o fim do mundo? "Ou o início", prefere. "No fim começa-se sempre." Agora diz-se ambientalista militante, tem o discurso arrumado e parece estar à espera de perguntas. "Uma notícia do fim do mundo?", repete. "As consequências do aquecimento global atingem proporções preocupantes." Garante que essa é a manchete do momento e que há-de repetir-se por vários anos. "Por norma o Verão em Ushuaia tem temperaturas que oscilam entre os 10 e os 15 graus. Este ano tivemos 30."

Antárctida a 15 graus

Ushuaia tem o mar como boca de cena. Quase 65 mil habitantes, um sem-número de turistas. Pela frente, no outro lado do canal Beagle, a ilha Navarina, território chileno onde existe um pequeno povoado, tão pequeno que não rivaliza com o estatuto de "cidade do fim do mundo" reivindicado pelo extremo da Argentina. Para sul, só a Antárctida. Carla Fulgenzi brinca, diz que "por enquanto" a descrição pode ser essa. "Espero que daqui a 20 ou 40 anos ainda possamos descrever Ushuaia com essas pinceladas geográficas, isto pode mudar tudo." Como autodidacta, sabe que o nível da água do mar pode subir. Expõe com orgulho que lê muito sobre o assunto. Sabe que os pólos serão as primeiras regiões a ser afectadas pelas alterações climáticas. Sabe que, entre 2002 e 2005, a NASA observou que a Antárctida perdeu entre 72 e 232 quilómetros cúbicos de gelo por ano. Os sinais detectados por Ricardo Uribe voltam a ecoar: "Veja o absurdo, recentemente a Antárctida registou 15 graus positivos, isto é uma aberração."

Bem no centro de Ushuaia funciona o Centro Austral de Investigação Científica. Dali partem investigadores para a Antárctida e para a cordilheira dos Andes. Rodolfo Iturraspe, coordenador do grupo de Neve e Gelo, ligado à UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), frisa que "a preocupação com as alterações climáticas" absorve a atenção dos 25 académicos que ali trabalham. "Desde 1900, o Glaciar Martial perdeu 60 por cento de área", diz, "mas o mais grave é que o desgaste se intensificou muito rapidamente nos últimos anos, a velocidade tem sido surpreendente." O pior, lamenta, é que já nada poderá ser reposto. Os glaciares já não retomam as dimensões habituais, nem ali, nem em Perito Moreno, no Chile. "Agora temos de tentar preservar a todo o custo o que ainda resiste e tentar travar, de todas as formas, o progresso do aquecimento global." Ainda assim, o investigador tenta sossegar os mais aflitos, aconselhando as pessoas a adaptarem-se às mudanças e a deixarem "definitivamente" de brincar com o planeta. E ensaia um sorriso apaziguador. "No Pólo Norte, com o degelo completo previsto para dentro de 50 anos, podem surgir novas rotas comerciais; no Sul mudarão as correntes, o que trará modificações nas cadeias alimentares."

Várias organizações de Ushuaia associaram-se ao mote lançado pelas Nações Unidas, que declararam 2008 o Ano Internacional da Terra. Carlos Ortiense dirige a agência Glaciar Turismo e implementou um conceito pedagógico nas excursões que organiza. A cada turista é fornecido um pequeno conjunto de imagens para que possa constatar as diferenças entre o "antes" e o "agora", sendo o degelo o factor de disparidade. "Quando subimos às montanhas, especialmente no Verão, queremos que pessoas vejam como isto está a mudar, como estamos a dar cabo do mundo."

Penalizar quem destrói

Perto do porto, num dos cartões postais de Ushuaia, um grupo de quatro pessoas aponta para cima, para o Glaciar Martial. Wilson Costa vive em Washington. É brasileiro e achou que tinha chegado a altura de trazer a família ao fim do mundo. Já não podia adiar a viagem, temeu que fosse tarde demais. "Vim mostrar os glaciares aos meus filhos enquanto ainda cá estão", diz. Wilson Costa saiu do Brasil há 18 anos e pratica esqui há dez: "O pior é que está a ficar tudo igual, desde os Alpes, aos Himalaias, ao Alasca." Elogia os alertas da ONU e a acção de várias ONG. Mas diz que isso não basta, que a espécie humana só reage perante penalizações. "Ou se penaliza de facto quem polui, quem destrói a camada de ozono, ou então isto nunca mais pára."

Ali bem perto do porto, onde atracam grande parte dos cruzeiros que vão ou vêm da Antárctida, há um pequeno grupo de teatro. Los Interventivos, lê-se numa placa afixada num portão de garagem. Ao lado, um pequeno cartaz anuncia que a 14 de Março estreia a peça Olvidate. "É uma maneira de alertarmos consciências, de dizermos às pessoas para esquecerem [olvidarem] o que isto já foi, a paisagem está a mudar, ainda que lentamente", diz Luiz Alonso, actor. O encenador não está.

Nas escolas da cidade, a disciplina de Ciências da Natureza aborda temáticas de preservação do meio ambiente. Carla Fulgenzi detectou-o ao ajudar o filho de 11 anos a fazer os trabalhos de casa. "Que pelo menos essa geração corrija os erros que a minha fez em termos de respeito pela Terra." Depois a ambientalista irrita-se, a voz fica tensa. "Isto está como viu, e sabe o que é notícia nos jornais locais? Não são os 30 graus em Ushuaia, é a chegada ao porto de um cruzeiro gay."

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