Boa ideia, mau filme

Gostaríamos de poder dizer que está aqui aquela desejada raridade: um bom filme português de grande público. Entidade fugidia e misteriosa que o realizador Leonel Vieira tem andado a perseguir ao longo das suas cinco anteriores longas-metragens; saiu-lhe o jackpot do êxito comercial com o bem feito mas esquemático "Zona J" (1998), mas percebia-se no bem interessante "A Sombra dos Abutres" (realizado em 1997, mas chegado às salas em 1999) ou no falhado "A Selva" (2002) que havia outras ambições, outro fôlego, outras vontades de contar histórias portugueses de maneira que não ficasse a dever nada àquilo que nos chegava lá de fora.

Mas ainda não é desta. Podemos louvar as boas intenções o mais que quisermos que isso não safa "Julgamento" de ser condenado sem apelo nem agravo. E não é culpa dos actores - pobre Henrique Viana, que teve aqui o seu último papel no cinema e a quem o filme é dedicado; pobre Alexandra Lencastre, que consegue o milagre de dar espessura a uma das personagens mais improváveis do cinema português; pobres Carlos Santos e José Eduardo, que mereciam melhor filme para o seu empenho.

É mesmo culpa, primeiro, de um guião que tem nas mãos um ponto de partida estimulante e o deixa fugir numa série de desenvolvimentos por demais telenovelísticos. Um escritor e professor universitário reconhece num homem que está a ser julgado por um acidente de automóvel o inspector da PIDE que o torturou e que foi responsável pela morte de um amigo e rapta-o para o obrigar a confessar a verdade. O feitiço volta-se contra o feiticeiro, o torcionário dá por si a ser torturado como ele próprio torturou em tempos, e os antigos revolucionários idealistas dão por si a questionar se foi para isto que se fez a revolução.

No momento em que Guantánamo e Abu Ghraib colocaram estas questões no centro de um debate global, é ousado e interessante pegar nestas questões no âmbito de um filme de grande público, ainda por cima num país que ainda não explorou a fundo a sua memória do século XX. Ou melhor: seria ousado, mas não é, porque não se explora essa súbita inversão, que fica quase sempre implícita por entre implausibilidades mais ou menos preocupantes e personagens insuficientemente desenvolvidas cujos tiques parecem existir apenas por conveniência narrativa.

O que "Julgamento" acaba por ser é a história de um "ajuste de contas" em que dois homens bons decidem fazer justiça por conta própria (ou vingança?), sem saberem muito bem no que se estão a meter - uma espécie de "Justiceiro da Noite" à portuguesa, envergonhado e desastrado, que nunca avança para lá de um maniqueísmo displicente, com a agravante da encenação segura e aparatosa de Leonel Vieira parecer desajustada à fotografia dessaturada de José António Loureiro (em que a luz do presente surge matizada pelo preto e branco do passado) e a um guião que pede claustrofobia e tensão. Se quisermos, é o problema de se querer filmar "à cinema" uma história que está demasiado escrita "à televisão".

Resultado: claustrofobia nem vê-la, tensão ainda menos, e tudo se arrasta de modo maçador, sublinhado pela partitura bombástica de Nuno Maló, tão desajustada do filme como tudo o resto de que aqui falámos. Uma oportunidade, mais do que perdida, completamente desbaratada.

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