Sem heróis

A realidade é sempre mais estranha que a ficção, costuma dizer-se. Mas é por isso que "Voo 93" mexe com o espectador muito mais do que uma mera ficção da angústia: porque o que se vê no filme do inglês Paul Greengrass não é ficção. É a história verídica do voo 93 da United Airlines de Nova Iorque para São Francisco, um dos quatro aviões desviados por terroristas muçulmanos no dia 11 de Setembro de 2001, e o único dos quatro que não chegou ao seu alvo (que se supunha ser o Capitólio, em Washington), devido a uma tentativa dos passageiros de retomar o controle do avião.

Todos os que estavam a bordo morreram. Desde então, a história do "flight that fought back", como lhe chamou um telefilme realizado por um canal de cabo americano, tornou-se num símbolo: um grupo de gente normal apanhada no olho do furacão, que tem a presença de espírito suficiente para tentar ensaiar uma resposta aos terroristas. Podia ser um filme-catástrofe (são as coordenadas que costumam nortear o género). Mas um filme-catástrofe é uma ficção que implica um (ou vários) herói(s), sacrifícios nobres, heroínas em perigo, finais felizes. "Voo 93" é um facto consumado da história contemporânea que não teve final feliz.

Evidentemente, haveria o risco de fazer desta história um símbolo heróico da resistência ao terrorismo, transformá-la num filme-catástrofe tradicional. E era esse o medo que rodeou a produção e a estreia da primeira longa produzida em Hollywood a abordar frontalmente a tragédia do 11 de Setembro: que Hollywood colocasse este filme na gaveta do "caso da vida", da hagiografia heróica personalizada em duas ou três figuras (como Oliver Stone terá feito no seu "World Trade Center", que chega a Portugal a 21 de Setembro). Mas não é nada disso que aqui temos. Paul Greengrass, antigo documentarista televisivo que entrou em Hollywood pela "porta grande" com "Supremacia" (2004), segundo episódio das aventuras do agente secreto Jason Bourne, conta esta história no tempo real dos acontecimentos, aplicando a mesma técnica de reconstituição quase jornalística dos factos que lhe valeu o Urso de Ouro em Berlim por "Domingo Sangrento" (2001). Precisamente por isso, "Voo 93" em nada parece uma produção americana - e isso não se deve apenas ao seu estatuto de co-produção britânica (financiado pela mesma Working Title que produz "O Diário de Bridget Jones" e outros "Orgulho e Preconceito") e à nacionalidade do seu realizador.

depois da televisão. Sem pinga de sensacionalismo nem ponta de exploração insensível, feito com a cooperação das famílias dos passageiros e tripulação do voo, com vários dos controladores aéreos civis e militares que viveram o dia a representarem os seus próprios papéis, reconstituindo em estúdios ingleses os cenários da acção, "Voo 93" é contado com a urgência nervosa do docudrama televisivo, essa rigorosa reconstituição narrativa dos factos em que a TV britânica se tornou perita. A esse nível, poder-se-á acusar o filme de ter mais de televisão do que de cinema - e o realizador formou-se na televisão inglesa, tanto na reportagem como no docudrama - e talvez seja esse o principal problema de "Voo 93" (embora seja também uma das suas particulares singularidades enquanto objecto cinematográfico, nestes dias em que a definição "profissional" de cinema se dilui perante um conjunto de experiências que procuram redefinir a sua linguagem). O seu formato estético e narrativo de veracidade reconstituída é algo a que estamos habituados na televisão, entendida como uma tomada da imagem no momento, mas não na mediação temporal mais distante do cinema. É, aliás, também esse o método que outro "aluno" da televisão britânica, Michael Winterbottom, tem vindo a explorar (em "Noutro Mundo" e, recentemente, num outro filme parente deste, "A Caminho de Guantánamo", que estreia em Portugal na próxima semana). Como se só os ingleses tivessem o distanciamento necessário para olhar para as coisas desapaixonadamente e reconstituir os factos para quem os quiser ver isentos de quaisquer apropriações (e é verdade que, hoje, este tipo de narrativa televisiva já não surge como antes nas grelhas dos canais, atirado para as margens pelas necessidades de conquistar audiências).

No entanto, é precisamente esse formato de veracidade que permite a Greengrass ganhar a sua aposta (ao contrário de Winterbottom, que não resiste a introduzir um lado de "colunista de opinião" nos filmes, bem visível no modo como toma partido em "A Caminho de Guantánamo"): este é um 11 de Setembro vivido "a quente", uma charneira na História que é descrita à medida que os acontecimentos se desenrolam, sem o benefício da compreensão "à posteriori", concentrado nos factos tal como os conhecemos e apenas neles. "Voo 93" começa numa manhã normal de terça-feira e termina quando o Boeing da United se despenha. No interim, não há respostas. Apenas factos: as questões e especulações daqueles que o espectador acompanha, perplexos e incrédulos, durante a primeira hora do filme entrecortando os vários centros de controle de voo e a calmaria a bordo do avião, durante a segunda concentrando-se nos acontecimentos a bordo do United 93.

a história em directo.

Afastando todas as apropriações ou incompreensões posteriores, assumindo a existência de alguma liberdade criativa (devidamente identificada no genérico final) para preencher vazios que a exaustiva documentação existente não mencionava, "Voo 93" devolve-nos a irredutível humanidade da gente normal apanhada no turbilhão da História, qualquer que seja o lado da barricada em que estava. Neste filme não há heróis: apenas um colectivo de pessoas assustadas, confusas, procurando fazer sentido dos acontecimentos que a rodeiam. É o exacto oposto do heroísmo esquemático do filme-catástrofe, até mesmo do individualismo do sonho americano: Greengrass filma uma comunidade, um colectivo confrontado com o impensável, sem singularizar ou individualizar em nenhum momento.

Quem está a bordo do avião não riposta por um qualquer sentimento patriótico ou moral: fá-lo por uma pragmática vontade de não morrer ali. Quem está nos centros de controle a tentar perceber o que se passa sente-se impotente perante uma situação que nunca imaginou, que não compreende, que não sabe como resolver. Este é o verdadeiro 11 de Setembro que todos vivemos em directo: o choque, a incompreensão, o horror, o medo. Vividos por pessoas normais apanhadas no turbilhão (e, para ampliar ainda mais a veracidade, Greengrass fez questão de não usar actores conhecidos em nenhum papel, substituindo inclusive no dossier de imprensa as tradicionais biografias do elenco pelas biografias dos passageiros e da tripulação). Contados sem sentimentalismos, sem rodriguinhos, sem excessos, mas com extremo e angustiante rigor.

"Voo 93" é uma tentativa de usar o cinema para garantir alguma "closure" - ou a "closure" possível - àqueles cujas vidas foram irremediavelmente transformadas pelo 11 de Setembro (no fundo, todos nós, mas mais de perto aqueles que o sentiram na carne). É demasiado cedo para um filme destes, como alguns afirmam? Talvez apenas só consigamos olhar para ele como um filme daqui a muito tempo, e nesse sentido talvez seja de facto demasiado cedo - porque a sua abordagem é tão radicalmente diferente da formatação hollywoodiana tradicional que o efeito de choque inicial (por ousar abordar algo que ainda não está suficientemente distante) é multiplicado pela vontade de introduzir essa distância e recusar todos os efeitos de aproximação. Mas a verdade é que o 11 de Setembro nunca estará distante, e nesse sentido nunca será demasiado cedo para um filme destes, importante hoje pela vontade com que olha, com dor mas sem hesitar, para dentro da ferida aberta, para que ela não infecte, importante amanhã por ter olhado quando mais ninguém o ousava. Este é um dos filmes do ano - mesmo para quem não gosta dele.

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