Cientistas vão abrir hoje em Coimbra o túmulo do primeiro rei de Portugal

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Por trás da abertura do túmulo está um projecto científico com o objectivo de reconstituir o perfil biológico de D. Afonso Henriques, falecido há 820 anos Paulo Ricca/PÚBLICO

Através de um pequeno orifício no túmulo de D. Afonso Henriques, na igreja do Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, a investigadora Eugénia Cunha introduziu um aparelho médico, um endoscópio, para espreitar lá para dentro. Viu duas pequenas urnas de madeira, uma sobre a outra, muito degradadas.

"O espaço é amplo e no centro estão as urnas. O fundo do túmulo é composto por pedra", conta a bióloga e antropóloga forense da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Hoje vai poder confirmar o que observou em Abril, e talvez muito mais, quando às 17h for aberto o túmulo do primeiro rei de Portugal.

A outra urna deve ser da mulher de D. Afonso Henriques, D. Mafalda, esclarece. Terão sido sepultados no mesmo túmulo na entrada da igreja do Mosteiro de Santa Cruz. Mas o rei D. Manuel considerou que o sepulcro medieval era modesto para o fundador da nacionalidade, no século XII, e mandou fazer outro.

Em 1515, os restos mortais foram transladados para o novo túmulo, que ficaria na nave da igreja. Entre 1522 e 1530, foi transladado outra vez, para a capela-mor, onde se encontra. A transladação poderá explicar o tamanho pequeno das urnas, como acontece quando se passam os restos mortais de uma sepultura para um ossário.

Tirando a espreitadela com o endoscópio (usado pelos médicos para ver o interior do corpo), Eugénia Cunha não faz ideia do que encontrará. "Gostava de saber se lá está o crânio... Ninguém sabe o que lá está."

Por trás da abertura do túmulo está um projecto científico com o objectivo de reconstituir o perfil biológico de D. Afonso Henriques, falecido há 820 anos. Por outras palavras: como era fisicamente o primeiro rei de Portugal?

Além de Eugénia Cunha e outras duas antropólogas da Universidade de Coimbra, Ana Carina Marques e Sónia Codinha, o retrato de D. Afonso Henriques vai ser traçado pelo médico e antropólogo forense espanhol Miguel Botella (Universidade de Granada), pelo médico francês Bertrand Ludes e a geneticista francesa Christine Kayser (Universidade de Estrasburgo) e o historiador português José Mattoso (Universidade Nova de Lisboa).

"O que mais real resta de D. Afonso Henriques, o seu esqueleto, pode dar-nos informações inéditas. Os ossos guardam episódios da vida que, devidamente decifrados, se tornam fontes documentais insubstituíveis", diz Eugénia Cunha.

Para tal, os ossos e outros restos mortais, como cabelos ou unhas, se os houver ainda, vão ser submetidos a uma bateria de estudos, como a datação por radiocarbono, a tomografia axial computorizada (TAC) e análises químicas e toxicológicas. Também tentará obter-se ADN, para traçar o perfil genético do rei. Medições dos ossos, para determinar a estatura do rei, e a observação à lupa, para detectar marcas de patologias, são outras coisas a fazer.

O mistério da estatura

Coexistem várias especulações sobre a estatura de D. Afonso Henriques. Teria 1,60 a 1,70 metros, como refere o historiador Hermano Saraiva? Ou 1,80 metros, como diz Oliveira Marques? Ou teria dois metros, como aparece nalguns relatos históricos? "Era forte e alto porque a sua espada era pesada?", questiona Eugénia Cunha.

O certo é que a descrição física de D. Afonso Henriques que perdurou até hoje é a de um homem grande e forte, como se lê na biografia de Diogo Freitas do Amaral, a única, até ao momento, dedicada especificamente a D. Afonso Henriques (Bertrand). "Fisicamente, era um homem alto e forte, com uma saúde de ferro: governou Portugal durante 57 anos, dos quais 45 com o título de rei. Foi o mais longo reinado ou mandato governativo, até hoje, na história de Portugal, em monarquia ou em república."

Esta imagem não surgiu do nada. A cerimónia da primeira transladação teve duas descrições. No século XVII, tanto o frei Timóteo dos Mártires como o frei Nicolau de Santa Maria relataram-na em crónicas, conta José Mattoso (que acabou de entregar ao Círculo de Leitores uma biografia de D. Afonso Henriques).

Timóteo dos Mártires diz que D. Afonso Henriques tinha dez palmos de altura - seria alto, com dois metros. Nicolau de Santa Maria fez uma descrição mais dramática: "Diz que D. Manuel sentou o corpo de D. Afonso Henriques num trono, com a espada na mão. As pessoas beijavam a mão ao cadáver. Os cronistas da época eram fantasistas", conta Mattoso.

Em 1832, D. Miguel terá querido ver o primeiro rei de Portugal e o túmulo foi aberto pela terceira vez. A notícia publicada então na Gazeta de Lisboa também dizia que tinha dez palmos de altura. Porém, a coincidência da estatura em relatos de épocas distintas não é garantia da verdade, frisa Mattoso.

"Não me admira que, depois da morte, o considerassem um grande homem, no sentido moral, e que essa qualificação tivesse passado para uma ideia física. O fundador da nacionalidade tinha de ser um homem grande. Devia ser um homem de grande vitalidade, pelas crónicas. Dirigia os combates em pessoa", diz Mattoso. "Vai ser interessante comparar essa ideia com os resultados dos exames antropológicos sobre toda a compleição física."

Menos dúvidas parece suscitar o ferimento numa perna em 1169, com 60 anos, no ataque a Badajoz, então sob a influência do rei Fernando II de Leão. Quando chegou o rei leonês, D. Afonso Henriques bateu com uma perna no ferrolho da porta da cidade (acabou preso e depois libertado). Mas não é claro se partiu a perna e se, por causa disso, nunca mais pôde andar a cavalo.

Ainda terá vivido 16 anos depois desse acidente - mas com que mobilidade? "Há várias descrições que dão a entender que ficou com dificuldade em andar. Mobilidade reduzida dá osteoporose. Será que ficou com osteoporose?", questiona-se Eugénia Cunha. E, caso tenha fracturado um osso, foi o fémur?

O famoso médico e poeta Júlio Dantas, presidente da Academia das Ciências de Lisboa, foi célere no diagnóstico, sem nunca ver os ossos do rei, num artigo de 1923 que é o cúmulo do espírito anticientífico. Intitulado A fractura do fémur de Afonso Henriques, termina a dizer: "O exame do esqueleto poderia fornecer elementos quanto à localização das lesões ósseas; mas não vale a pena, para se saber onde se fracturou um fémur, perturbar, mais uma vez, a paz da sepultura real."

Também a idade que tinha ao morrer é incerta. Sabe-se que foi em Dezembro de 1185, em Coimbra, só que não se sabe o ano em que nasceu, embora 1109 seja o mais provável, o que situaria a morte aos 76 anos. No entanto, no túmulo manuelino, o epitáfio diz que morreu com 91 anos. Eugénia Cunha não está à espera de obter uma idade precisa mas, baseando-se no estudo de certos ossos, talvez possa obter uma estimativa do grupo etário onde se incluía D. Afonso Henriques.

Mas nos ossos ela espera encontrar algumas respostas para os tantos mistérios que ainda envolvem o rei que fundou Portugal e alargou os seus territórios, do Minho até Beja, ao longo do século XII, conquistando território aos mouros. "Vamos tentar obter a imagem do rei e contar episódios da sua vida", resume Eugénia Cunha. No início da próxima semana, os ossos regressão ao túmulo.

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