Santa Maria heroína em teu ventre

Maria Alvarez, 18 anos, é cheia de graça e tem 23 cápsulas de heroína em seu ventre. Cansou-se de olhar para o céu do telhado das casas de uma aldeia colombiana quando se queria afastar do conformismo do namorado, da dependência da avó, da mãe e da irmã... Maria cansou-se da fábrica onde tirava os espinhos às rosas.

Maria olhava para o ceú, mas isso já não chegava.

Um dia montou na mota de alguém que engana o seu próprio desespero à custa do desespero dos outros - um recrutador de "mulas da droga" - e submeteu-se ao ritual de iniciação na grande cidade, Bogotá: engolir cápsulas de heroína, 17, antes de voar para uma cidade ainda maior, Nova Iorque, ao serviço de uma rede de tráfico. É isso uma "mula". O que se ganha numa viagem dá para mudar de vida (o menor dos riscos destes corpos de aluguer dos barões da droga é a prisão, e a morte é certa se uma das cápsulas rebentar).

"Maria Cheia de Graça", diz o título do filme em português. "Maria Full of Grace", diz o título original de um filme todo falado em espanhol, rodado na Colômbia e no Equador (país que serviu quando as condições sociais e políticas o impuseram), e aproveitando apenas do cenário americano o bairro de Queens, Nova Iorque, e a experiência de emigração colombiana. Filme "indie" americano. E primeira obra de Joshua Marston, 35 anos, produzida pela cadeia de TV por cabo HBO. O objecto é atípico na área do cinema "indie" e isso também se deve ao "background" do realizador/argumentista: é diplomado em Ciências Políticas, trabalhou fora dos EUA (como fotógrafo para a revista Life, mas cansou-se da "falta da espessura da fotografia" para dar conta das histórias; ou para a ABC News durante a Guerra do Golfo), e, portanto, é alguém que exercitou a sua curiosidade em relação às culturas exteriores às do seu país. Esta abertura não é habitual no cinema americano, nem no circuito "indie", onde se olha sobretudo para a América - vale a pena citar uma entrevista feita a Marston, em que ele disse: "Sinto que o cinema americano, particularmente o cinema independente americano, está muito virado para dentro, é muito solipsista e demasiado preocupado com a terapia pessoal do realizador".

"Maria Cheia de Graça" é voltado para as persongens, deixa que "o cinema" se apague por elas. Começou a ser assim anos antes da rodagem, quando Marston, nascido e criado na California, tomou contacto com experiência dos imigrantes colombianos em bairros como Queens. Onde ouviu testemunhos de mulheres, dos 17 aos 82 anos, que engoliram cápsulas de droga, ou de membros activos da comunidade que, desde os anos 80, trabalham numa rede de protecção destes "transportadores" e das suas famílias, para os proteger das represálias dos "dealers" (quando desistem da tarefa) ou para devolver à Colômbia os restos mortais dos que morreram "em trabalho" - a conta já vai em mais de 400.

Estas e outras histórias estiveram na origem de "Maria Cheia de Graça". É por elas, é por estar do lado delas, que a ficção nunca é alibi para se abandonar a perspectiva colombiana (nem quando o filme chega a Nova Iorque), para deixar de descrever uma teia social e política que se aperta sobre os indivíduos ou para abandonar Maria. Há um pacto de fidelidade canina em relação às personagens e à verdade dos acontecimentos (por exemplo, a cena em que, no aeroporto de Nova Iorque, a polícia intercepta Maria) que é tenaz.

Pode perguntar-se: não é esse o programa, a militância, do cinema de alguém como Ken Loach? Sim, e fala-se nele porque Marston assume a influência do cinema do britânico na sua relação com o mundo. Tal como acontece nos filmes de Loach, também "Maria Cheia de Graça" impõe uma relação, cinematográfica, política e ética, com um corpo e com as suas atribulações, neste caso o de uma jovem de 23 anos, Catalina Sandino Moreno, nascida em Bogotá [ver texto nestas páginas]. É através da personagem de Maria, olhar de reserva e determinação, apreensão e ousadia, espanto e rebeldia, que o filme se revela. Mas é aqui que "Maria Cheia e Graça" se autonomiza do simbolismo esquálido do "filme de denúncia" ou das (boas) intenções de militância. O título explicita-o. Se este é um filme onde o tráfico está em marcha, onde um corpo é usado e abusado ("Como está o teu estômago? Gastrite, problemas estomacais? Comes muito?", perguntam a Maria, reduzindo-a uma máquina), Joshua Marston também procede a transferências e sugestões: religião e a economia da droga, sexo e a liturgia - o acto de engolir cápsulas é aproximado ao de uma "sagrada comunhão" e a um acto sexual; Maria traz no ventre droga, mas também uma criança (está grávida, o que não contradiz a sua "virgindade") e é isso que a salva, que garante a entrega da mercadoria e que a deixa aceder ao "céu", Nova Iorque; e é isso que a liberta. Mas tudo isso não seria muito se, entre a sugestão de blasfémia - não mais do que isso -, a fetichização e a ironia, o filme não individualizasse uma personagem no mar de um destino baço. "Je vous salue..." Maria, Catalina Sandino Moreno.

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