Um, dois, três... Mishcka

A mão entra dentro do genério inicial e assim faz nascer o filme. É menos a mão de um cineasta ou de um pintor, é a mão de um alquimista. Se quiserem, é a mão de um mágico, porque aqui trata-se mais de um passe de mágica do que um filme. Um, dois, três e, voilà, Mischka, um filme de Jean-François Stévenin.

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Levem-no para férias, porque é uma experiência transbordante. É um filme sobre o Verão e sobre as férias, sobre a França profunda (com anjos de helicóptero a sobrevoar os céus...), sobre famílias e afectos que colidem nas auto-estradas. Parece estranho, é estranho, mas pode deixar alguém em estado de euforia e exaltação.

Auto-estradas, sim, e um corrupio de caravanas de franceses, italianos e alemães, é esse o cenário, em Mischka, onde se inventam hipóteses de famílias e afectos. A Europa vai de caravana e inventa-se como utopia. Quem conduz é o destino, uma prodigiosa energia a que se chama destino.

Começamos com Jeanne, que também se chama Jane, acabada de fugir da casa da mãe, com um irmão nos braços, para reencontrar o pai. Depois, como se a câmara fosse empurrada pela sua própria energia, estamos já dentro de um carro onde um casal que iniciou a sua viagem de férias tem a típica discussão dos dias de calor no início das férias — mas aqui sente-se que é também o excesso de emoções entre os dois que os estorva e quase os derruba. No banco de trás, também tipicamente silencioso perante a discussão que decorre à frente, e sobretudo esquecido por aqueles que discutem, está um velho. Que vai mesmo ser esquecido à beira de uma auto-estrada, como quem deitou fora excesso de peso, e vai vaguear sozinho, de roupão; ele é que é o boneco de pelúcia do filme, é a ele que os outros vão chamar Mischka. Vai ser socorrido — nova sacudidela de energia, sopro de brisa de Verão — pelo enfermeiro de um asilo, um ex-alcoólico que já não tem pai e que queria tanto reencontrar uma filha.

Um, dois, três e... eis uma família de bolso, pronta a consumir: Jeanne/Jane, para iludir a polícia que procura uma adolescente fugida de casa, vai inventar um avô (Mishcka) antes de, finalmente, encontrar o verdadeiro pai. Gégène, é esse o nome do enfermeiro, decide fazer do velhote coberto por um roupão de pelúcia o objecto dos seus afectos de filho e da adolescente o alvo das suas atenções de pai frustrado. E assim sucessivamente, e dessa forma ou de outra, de reinvenção em reinvenção, à medida que outras personagens aparecem (por exemplo, uma cigana rockeira, Joli-Coeur de seu nome) e à medida que novas auto-estradas se vão cruzando.

Chegados a este ponto do percurso, é a altura de interrogar o enfermeiro alcoólico Gégène — melhor, o actor que o interpreta, Jean-François Stévenin, o realizador. Para saber do fluxo ébrio que imprime à sua personagem, da energia transbordante que se comunica do seu filme... "Sou assim na vida", diz Stévenin, numa conversa telefónica com o Y. "E no cinema, claro, tudo isso toma outra dimensão, devido aos problemas, às questões de produção e ao dinheiro. Filma-se em dois dias o que era precioso filmar em três, enfim, é fatigante... Mas essa é a minha energia. E é assim na mesa de montagem e é assim durante a fase de misturas."

Família alternativa

A vida e o cinema — a vida no cinema — é questão decisiva para o realizador. Se se reparar no genérico de Mischka, há vários Stévenin como actores. Está lá a mulher, está lá a filha, está ele próprio, Jean-François. Como se o cinema tivesse de ser questão de família, mesmo que cada um dos Stévenin tivesse no filme a oportunidade, que é dada às personagens, de sonharem com uma família alternativa — é que nenhum Stévenin faz de filho, pai ou esposo de outro Stévenin.

"Para mim, o cinema é a ideia de cada um construir a sua família. O que gosto nos filmes de John Cassavetes, por exemplo, é a forma como eles são feitos. Vi os filmes dele numa altura em que ainda não conhecia o cinema e depois fui sabendo que era muito angustiado e que improvisava com a própria família — ou com uma família que criava. Mischka foi realizado e montado em casa, com toda a gente a comer. Não para imitar Cassavetes, mas porque era essa a minha necessidade: estar no filme não de forma profissional, mas de forma afectiva."

Stévenin fala de Cassavetes, e muitos têm falado de Cassavetes como influência na obra do actor/cineasta francês — Mischka é a sua terceira realização, depois de Passe Montagne (1978) e Double Messieurs (1986). É certo que as paisagens e as gentes — o olhar comovido pelas personagens simples, populares; e pela paisagem, ela própria personagem - também nos levariam a invocar o nome de Jean Renoir. Mas Cassavetes corresponde, de facto, a um posicionamento existencial, vital, afectivo — o cinema como espaço de colisão de afectos e de exacerbação dos sentimentos. No limite, os filmes de Stévenin tentam captar os fluxos de sentimentos entre as personagens — o homem do casal que discute em Mischka, interpretado por Yves Afonso, não é outra coisa senão uma vítima do seu próprio excesso, de um desejo que não se contém no corpo. Como se tudo, natureza e personagens, fosse sempre energia em potência, pronta a libertar-se, a autonomizar-se em blocos que se lançam à deriva. É um movimento que não é só interior ao filme. Há momentos, em Mischka, em que a câmara parece animada por uma vertigem de autonomia; há movimentos que se intrometem sem outra lógica que não seja a de puro fluir sensorial, ou desordem do desejo. Que é sempre renovado, como se cada passe de mágica, cada movimento de invenção da realidade, reforçasse a possibilidade de crença do espectador. Alguém acredita que um anjo vai descer de helicóptero, como antecipa uma personagem? Não, mas quando o milagre acontece, toda a gente acredita. E esse anjo é Johnny Hallyday, rocker, 60 anos, que faz dele próprio (ou de incarnação dele próprio) em Mischka (e é uma obsessão de Stévenin, porque, por exemplo, é uma obsessão das personagens de Double Messieurs). Para o realizador, Johnny é uma das figuras centrais da França do século XX, é o anjo que sobrevoou a França profunda.

"É um transmissor de energia. E o único em França assim. Estou neste momento a andar de volta dele com uma câmara de vídeo, a segui-lo na sua tournée, que vai passar por todos os estádios de França, para comemorar o seu 60º aniversário. O que é que me interessa? Há algo de sincero que ele faz passar. Tem uma dimensão que está para além dele." Aura? "Ele incarna qualquer coisa, sim. E isso tem um efeito terapêutico. Carrega as nossas baterias. É o símbolo de algo, é um tipo que encarna a sua própria personagem. A partir do momento em que aparece no filme, as pessoas acreditam no que vem a seguir — o filme toma outra dimensão." A energia outra vez. Um, dois, três, Mischka...

O sonho

Para além de original, é rara a obra deste realizador (entre os dois últimos filmes passaram 16 anos). "Não consigo filmar argumentos dos outros. Tem de haver um desejo muito grande, e nesse aspecto sou muito, muito lento. Preciso de dois, três anos para escrever um argumento, preciso de observar as pessoas, o comportamento delas. Há também o medo. O medo da produção. Em cada filme, há sempre um momento em que sentimos que o projecto pode estar à beira de acabar. Sempre que há um filme a fazer, tem de se passar por isso e não gosto de voltar a experimentar isso. É um pesadelo. Há pessoas — por exemplo, o meu amigo Raoul Ruiz — que conseguem filmar entre duas óperas e uma peça de teatro, não param. Eu não consigo. Sou lento e preciso de uma estrutura de produção. E como sou eu que arranjo o dinheiro, não posso pensar que se correr mal faço outro, porque de facto não posso deixar um e fazer outro. Do que gosto no cinema é da equipa, da alegria — da tristeza também — com os actores."

Se calhar o espectador não sabe, mas em Jean-François Stévenin está um pedaço da memória e do património do cinema francês. Vejam só: como actor, esteve nos filmes dos autores da nouvelle vague, de Truffaut a Rivette, passando por Godard, esteve em outras hipóteses de cinema de caução autoral e com vocação de prestígio (Téchiné, por exemplo, mas também Blier), em exemplos tão pessoais e frágeis, como é a obra de Jacques Démy, e passeia-se igualmente como secundário, e com voracidade, pelo cinema dito comercial. Há mais de trinta anos.

Para além disso, foi assistente de Truffaut (Domicílio Conjugal, 1970; A Noite Americana, 1973) e de Rivette (Out 1: Noli me Tangere, 1971). Ouvindo-o falar, a forma dessacralizada como invoca o nome de Godard ou de Truffaut, percebe-se que se manteve irredutivelmente simples, popular. É essa a sua aura — todos os franceses o conhecem, mesmo se nunca viram os seus filmes. Aura?, ele dá um sobressalto. Sim, algo (se calhar como acontece com Hallyday e com alguns dos actores que Jean-François utiliza, caso de Yves Afonso) que tem a ver com essa capacidade de encarnação. "Não sei. Aconteceu, de facto, que durante os concertos de Johnny eu andava com a câmara por entre as pessoas e ouvia: 'Ah, é o Stévenin.' Há alguma coisa sim, mas não sei o que é." Também terá a ver com pudor.

"Não vejo os filmes que faço, porque se não gostar deles, isso vai dar-me vertigens. Não vejo os filmes dos outros, porque prefiro ficar com o sonho. Prefiro as pessoas. O filme é para o público. Dizem-me que exagero, mas do que gosto mesmo é da auto-estrada." Uma ideia, em Mischka, de uma Europa alternativa? "Sim, e não seria extraordinário? Para mim, que nasci em 1944, no final da guerra, acho genial a ideia de Europa. Por isso esta Europa que se move de caravana no meu filme, por isso os alemães e os italianos que aparecem a visitar este país, a França."

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