Álbum de Timor Colonial dos anos 30 doado a Xanana Gusmão

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O ICS entrega hoje um fac-simile de um documento feito por um governador dos anos 30 DR

Ninguém sabe como foi feito e com que fim, mas o "Álbum Fontoura", um documento com mais de 500 fotografias tiradas nos anos 30 e salvo antes da invasão, em 1975, de Timor Leste pela Indonésia, foi agora redescoberto em Portugal. Hoje, um "fac-simile" do álbum recuperado é entregue à embaixadora de Timor pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS), numa cerimónia que terá lugar às 18h30, na Fundação Mário Soares, em Lisboa.

A responsável pelo projecto, Fátima Patriarca, do Arquivo de História Social do ICS, quer que o álbum chegue às mãos de Xanana Gusmão, Presidente da República de Timor Leste. O documento, um produto da administração colonial portuguesa, pode provocar algum "melindre político", mas esta historiadora pensa que é tempo de assumirmos que "fomos colonizadores e eles colonizados".

A pose da maioria das fotos é a da antropologia física, em que homens e mulheres aparecem fotografados nus da cintura para cima, geralmente aos pares. São estranhas fotografias, em que é possível adivinhar o mal-estar que estas timorenses terão sentido há mais de 70 anos, quando o fotógrafo da missão colonial as colocou, despidas, perante um desmaiado cenário clássico.

Porque é que estas mulheres aparecem nuas? Essa foi uma das muitas perguntas que fez Fátima Patriarca, desde que o ICS recebeu em depósito o "Álbum Fontoura", um documento com 549 fotografias feito entre 1936 e 1940, provavelmente uma ideia do governador de Timor, Álvaro Fontoura, que administrou a colónia entre 1937 e 1940. Só 20 fotografias aparecem datadas, algumas mostrando a inscrição "Ano X. Revolução Nacional", numa referência ao ano de 1936, uma década depois do golpe de Estado que fez António de Oliveira Salazar chegar ao poder. "Foram captadas no tempo do major Raul Manso Preto, antecessor de Fontoura no governo de Timor", explica Patriarca.

Um país sem arquivos

Algumas respostas às questões levantadas, Fátima Patriarca encontrou-as na obra "Timor Português", de Hélio Felgas, publicada em 1956: só as "timorenses do mato e de menores posses" baixam o "sarong" até à cintura, "deixando o peito a descoberto durante o trabalho no campo ou na marcha para o bazar". Mas desvendar os vários mistérios do álbum não é o objectivo de Fátima Patriarca, cujo trabalho culmina hoje com a entrega do "fac-simile" à embaixadora Pascoela Barreto, que deverá fazer chegar a oferta do ICS a Xanana Gusmão. O projecto do ICS, que envolveu também o restauro do original e a realização de um CD-ROM num contrato com a Fundação Mário Soares, teve um investimento de 12,5 mil euros do Ministério da Ciência e da Tecnologia.

O CD-ROM permitirá desenvolver todo o tipo de investigações sobre o "Álbum Fontoura", um pesadíssimo documento com 208 páginas e uma capa ilustrada com o brasão da Colónia Portuguesa de Timor. "Agora quem quiser tocar o instrumento que o faça. Não me cabia a mim como arquivista fazer investigação. Quisemos fazer um 'fac-simile' para oferecer aos arquivos de Timor, que isto fosse um instrumento de estudo do país. O álbum é algo que interessa aos timorenses, apesar da carga muito colonial. É um retrato de partes de Timor que desapareceram com a invasão japonesa na Segunda Guerra Mundial e que as gerações nascidas depois de 1945 desconhecem", diz Fátima Patriarca.

"A penúria de Timor Leste em matéria de arquivos é total. Isto para Timor é uma base de trabalho", diz Alfredo Caldeira, da Fundação Mário Soares, que esteve já várias vezes em Timor, porque a fundação tem um acordo com o país para tratar os arquivos da resistência.

Luís Filipe Tomaz, que apresentará hoje a obra na fundação, é mais peremptório: "Não há arquivos em Timor Leste." Houve vários fogos, nos séculos XVIII e XIX, a invasão dos japoneses e os posteriores bombardeamentos australianos para libertar Díli, a invasão indonésia, a acção destruidora das milícias. O historiador José Mattoso, segundo Tomaz, encontrou alguns documentos no sótão do destruído Palácio do Governador. "Mas são do século XX e é tudo."

Por isso, o Centro de Estudos de Povos e Cultura de Expressão Portuguesa da Universidade Católica fez um levantamentos nos arquivos de Portugal, Macau, Goa, Vaticano, Holanda e Espanha para oferecer a Timor Leste os documentos microfilmados. "Está a ser ultimado. Mas só irão para lá quando Timor tiver uma estrutura que os possa receber."

Várias obras públicas

A primeira parte do "Álbum Fontoura", cerca de metade, é ocupada com fotografias dos tipos físicos de Timor, num capítulo intitulado "Tipos característicos segundo as línguas". São 120 fotografias a meio corpo, que correspondem, segundo as contas de Fátima Patriarca, a 22 por cento das imagens do álbum. Há muitas vezes uma profusão de adereços, que contrasta com a nudez dos corpos. Para além da divisão por 29 línguas, a legenda que apresentam é o localidade de origem.

Mas o objectivo das fotografias - a realização de futuros estudos de antropologia física - terá sido cumprido, porque Hélio Felgas escreve que o antropólogo António Mendes Correia usou algumas das "esplêndidas fotografias" do "Álbum Fontoura". O antropólogo, "o pai da antropologia física", utilizou o exemplar que o governador tinha oferecido à Agência Geral das Colónias. "Supõe-se que este exemplar se encontre hoje nos fundos do Arquivo Histórico Ultramarino - apesar do arquivo não o conseguir localizar - e que haja ainda outro exemplar nas mãos dos descendentes da família Fontoura", diz Fátima Patriarca.

"Não garanto que este exemplar esteja completo. Não se sabe como foi feito, quando, onde e com que fim", continua, acrescentando que muitas das fotografias coincidiram com a estadia em Timor de uma missão geográfica nomeada em 16 de Outubro de 1937. Há 27 fotografias no álbum dessa missão, que terá envolvido quatro a cinco elementos, na parte dedicada à "acção civilizadora e colonizadora" (ver texto ao lado).

O segundo capítulo do álbum é dedicado aos "tipos característicos gerais", sendo agora as pessoas fotografadas em grupos. Seguem-se outras fotografias sobre "trajos, ornamentos, pertences e armas" e aspectos da "vida familiar e social". Aqui, com a legenda "família cristã" aparece um casal, com três crianças, vestido numa mistura entre ocidente e oriente.

Vêm depois as "formas de trabalho", com os subcapítulos "indústrias, comércio, artes rurais, arte indígena e instrumentos musicais". O álbum acaba com o capítulo da "acção civilizadora e colonizadora", dividido pelas "construções e embelezamentos" e assistências "sanitária, escolar, missionária e administrativa".

"Durante os bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial destruiu-se muita obra pública", afirma Fátima Patriarca, podendo ver-se desde a construção de pontes, escolas, hospitais e igrejas até à compra de um vapor e de uma ambulância Chevrolet. "É um dos momentos em que Portugal fez algum investimento naquela colónia." O álbum é, aliás, um pouco surpreendente pela quantidade de obra pública retratada, sendo um documento a explorar pela história colonial.

Mesmo como produto de uma sociedade colonial, o álbum mostra algumas incongruências, sublinha a historiadora, como o facto de Aleixo Corte Real ter um lugar predominante numa página em que aparecem as personalidades locais. A explicação poderá estar na data em que o álbum foi organizado, já depois da morte do régulo (pequeno rei) do Suro. Fontoura quis provavelmente prestar homenagem a Aleixo Corte Real, que terá morrido heroicamente ao resistir aos japoneses. D. Aleixo surge no meio da página, rodeado de fotografias da chegada de Fontoura, de um retrato do bispo, de uma comemoração em torno do golpe de Estado de 1926 e da compra do vapor no ano de 1939. A lenda diz que morreu embrulhado numa bandeira portuguesa.

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