M&M

"Flashback": no ano 2000, o "Inimigo Público" número 1 é um rapaz chamado Eminem (de nome próprio Marshall Mathers III, ou M&M, ou Em para os amigos), nascido muito longe do céu, em Detroit, e que do seu subúrbio atira palavras como "bitch" e "faggot" ao rosto da América.

A violência das palavras, com as quais o rapaz junta os detritos, apanha os restos da sua vida pessoal, faz-se acompanhar por prisão devido a posse de arma, por processos em tribunal e pelo restante carnaval. Resultado: demonização.

"Flashforward", Verão de 2002: o Governo americano decide difundir no Médio Oriente as canções da maior estrela da música americana, no quadro de uma campanha de propaganda destinada a melhorar a imagem dos americanos junto dos jovens árabes. A estrela chama-se Eminem (de nome próprio Marshall Mathers III, ou M&M, ou Em para os amigos).

Depois de três álbuns beligerantes, "The Slim Shady LP", "The Marshall Mathers LP" e "The Eminem Show" (este, para além do mais, é uma parada circense e de autopunição), que subiram ao topo das tabelas e enervaram as instituições, Eminem tornou-se "role model". Continua, nas canções, a invectivar contra a mãe - por causa da adolescência que lhe deu - e contra a mulher (por causa do divórcio e da roupa suja que ambos lavaram em público). E não se esquece de disparar contra si próprio, exorcizando demónios. Mas agora é o pai divorciado modelo. O sentimento de exclusão que canta faz reunir nos concertos um espectro geracional que vai dos 5 aos 55 anos.

Eminem, um branco que vasculha no baú da música negra, é a coisa mais próxima, hoje, de Elvis Presley? O próprio, que pode ser acusado de tudo menos de não ter enorme sentido de autoparódia (conferir, de novo, em "The Eminem Show"), fazia o exorcismo numa canção: "Sou a coisa pior desde Elvis Presley, fazer música negra de forma egoísta e usá-la para enriquecer." Resumindo: o rebelde de ontem é a marca de chocolates de hoje? A ser assim, e continuando a pensar em Elvis, só faltaria mesmo um filme para materializar a "franchise". "8 Mile", de Curtis Hanson, que se estreia hoje, é o "Blue Hawai" de Marshall Mathers?

verdade e ficção.

No filme, ele chama-se Jimmy "Rabbit" Smith Jr., e pode ser visto como mais uma versão de Marshall Mathers, ao lado do alter-ego Slim Shady que criou nos discos. É um aspirante a "rapper" que se separou da namorada e vai viver para um parque de atrelados com a mãe, mulher sem recursos que só recorre ao álcool (Kim Basinger), e com Lilly, a irmã de seis anos.

A única coisa que faz sonhar Jimmy são as rimas, às quais se atira à menor aparição de uma folha de papel. Jimmy "Rabbit" Smith Jr., branco, quer ser vencedor numa zona dominada por negros: o hip hop e a 8 Mile Road, a auto-estrada que estabelece a fronteira entre os subúrbios brancos e a área, delapidada, onde vive a população negra.

Fazendo o inventário dos factos da vida de Eminem, vai encontrar-se uma zona de coabitação com a personagem de Jimmy: pai ausente, mãe agarrada a comprimidos e álcool, a vida em caravanas, expondo os seus sonhos dos dois lados de 8 Mile Road (Eminem contou que tanto teve amigos brancos, filhos de pais racistas, exemplares da América "redneck", como amigos negros - e inimigos negros, prontos a assobiar, como quem desmascara um embuste, sempre que o branco pegava no microfone).

Inventariando as figuras de ficção de "8 Mile", é impossível não ver na personagem de Kim Basinger a materialização do espectro materno que assombra as canções e os videoclips de Eminem (sempre uma figura loira com as marcas da ruína). E, embora Jimmy tenha um interesse amoroso, o seu amor é a irmã, que, até em termos de idade, poderia ser Hailie, filha dele, Eminem, e o único "anjo" nas suas canções e na sua vida.

Portanto, a conclusão tem de ser "biografia"? Ou "veículo"? A resposta, tendo em conta o surpreendente objecto que é "8 Mile", poderá ser dada desta forma: se é biografia, é biografia em surdina, a decantação dos motivos da vida deste rapaz (que entretanto se tornou estrela planetária), abrindo para a abstracção do mito cinematográfico, do mito americano. É mais original do que a típica aventura da estrela pop no cinema, não tem nada com Elvis, nem com os exóticos veículos cinematográficos em que ele entrou (e em que ficava sempre à porta, como peixe na água). Tem mais a ver com o James Dean de "Fúria de Viver", o John Travolta de "Febre de Sábado à Noite", o Sylvester Stallone de "Rocky": a transformação do "underdog", o excluído (muitas vezes o proletário) que encontra a via de uma transcendência. É uma história tão velha (e universal) como o "sonho americano".

combate e pacto.

Na origem do projecto, esteve uma conversa entre Jimmy Iovine, vice-presidente da editora Interscope, e o produtor Brian Gazer. Ambos recordaram os tempos - anos 70 - de "A Febre de Sábado à Noite". A Interscope tem no seu catálogo um tal Eminem e, assim, juntando um mais um foi contratado Scott Silver para escrever um argumento.

Tudo isto aconteceu há mais de três anos, não era Eminem a estrela que é hoje (o que ajuda a pôr de lado a ideia de projecto de marketing). Silver deparou-se mesmo com a indiferença do artista, que ainda assim permitiu que o argumentista partisse com ele em "tournée". Scott Silver fez entrevistas a amigos de Eminem, recolheu anedotas e episódios sobre a figura e, também, sobre Detroit. O resultado já era "sui generis", mas o responsável pela vertente abstractizante de "8 Mile" é o realizador Curtis Hanson. Eminem referiu-se desta forma ao filme: "Simboliza a minha vida, sim, mas que as pessoas não confundam o filme com a minha verdadeira história" (que, diz quem o conhece, é de facto mais dramática). Nas imagens de "8 Mile" parece descobrir-se, então, um pacto tácito entre realizador e o actor, como se cada um deles quisesse fugir ao que se esperava deles.

Hanson, produzido por Gazer, o mesmo homem que esteve por trás de "Uma Mente Brilhante" (biografia, do matemático John Nash, que está nos antípodas desta), resiste à eventual força centrífuga da vedeta e interessa-se, como num documentário, por um cenário, a descarnada Detroit - nunca o exibindo, é por isso que ele se grava definitivamente na nossa memória.

Faz mais do que isso. Mantém-se, do princípio ao fim, dentro do ringue da metáfora que encontrou para contar a história: os duelos de "hip hop" como um combate de palavras (quem entrar para "8 Mile" sem souber ao que vai vê as primeiras cenas como um filme sobre um "boxeur", sobre um novo Rocky). E mantém o seu olhar à altura das personagens - uma das formas de as respeitar é não filmar a ilusão de que o sonho se cumpre para elas; deixamos Jimmy sozinho, a caminhar por uma ruela mítica, mas "8 Mile" suspende-se aí.

No outro lado do "pacto" está Eminem. Que aceita fazer uma versão de si próprio que implica perder algumas das marcas gritantes de si próprio, subjugando-se ao olhar de um cineasta, sem ser propriamente actor mas também não sendo apenas ele próprio. Esta capacidade de se multiplicar e de muitas vezes jogar contra si (humildade? não deixa de ser uma forma suprema de narcisismo, mas é certamente uma prova de inteligência) só é motivo de admiração para quem sempre catalogou Eminem e a sua música como insolência "white trash" (e agora, o que fazer com ele e com o filme?)

Eminem saiu do gueto, é estrela planetária. Para além daquilo que é mecanismo normal de integração das margens (é a história de todos os rebeldes do rock, para nos ficarmos pela música), não foi ele que se tornou mais "mainstream", o hip hop é que cruzou gerações e classes sociais. As guerras do hip hop acabaram, as guerras contra Eminem acabaram. "Porque Bin Laden acabou com tudo isso", diz Jimmy Iovine da Interscope Records, e deve saber do que fala. O hip hop tornou-se norma cultural, em vez de excepção. Tornou-se tão popular que conseguiu lançar para debaixo do tapete as razões de crispação.

"8 Mile" é um mecanismo nesse estratagema de integração? É qualquer coisa de mais indecifrável do que isso, é um momento feliz, raro, de coincidência: condensou o momento em que a realidade se tornou mito. Aos 30 anos de Marshall Mothers.

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