Wallace Roney com os dedos atados ao passado

Suspeitava-se, mas dificilmente se poderia adivinhar, que a prestação da banda do trompetista no encerramento do Matosinhos em Jazz ficasse tão presa à herança de Miles Davis.

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Wallace Roney na Exponor: onde é que eu já vi isto? Nélson Garrido/PÚBLICO

No princípio foi o sobressalto: ficou num ápice a saber-se que o código genético do concerto do quinteto liderado por Wallace Roney, que encerrou a edição 2002 do "Matosinhos em Jazz", resultava da clonagem do universo de Miles Davis. Mas não o Miles da glória, antes o Miles da deriva em busca de mais uma nova revolução estética, o Miles da fase eléctrica dos anos 80.

Sem a mais leve penumbra de inovação, num registo corta e cola, lá se ouviram os ambientes sonoros dos sintetizadores, as batidas fortes e sincopadas da bateria, os solos na trompete em crescendo de intensidade até regressarem à ilusória suavidade que apenas abre a porta a novas intervenções. O quinteto de Roney apresentou-se em Matosinhos assim, sem alma e de memória mal parada.

O evoluir do concerto acabaria por nos levar por outros caminhos do legado milesiano. Mas se esses trilhos nos haveriam, pelo menos, de proporcionar o sincero prazer de sentir o jazz fluir na intimidade dos músicos, na evolução exaltante dos temas ou na revisitação de lugares sagrados (lá se ouviram acordes de "Someday my prince will come", de "Milestones", até "A Love Supreme", de John Coltrane), foi de todo impossível abandonar a desconfortável sensação que tudo aquilo não passava de um evidente "dèja vu". Até a forma como Roney se curvava no momento dos solos podia fazer lembrar as imagens clássicas do grande mestre no palco.

Que houve bons momentos, excelentes momentos no concerto de anteontem na Exponor, disso poucos podem duvidar. Quando o sintetizador de Adan Holzman se calava para os solos ou as harmonias do piano, quando o soberbo contrabaixo de Buster Williams se podia ouvir sem a parafernália sonora da bateria, quando os blues se substituíam à electricidade, pôde-se então fazer as pazes com o jazz. Até porque, se era de todo impossível escutar Wallace Roney sem evocar os crescendos dos solos de Miles, os seus silêncios únicos, a sonoridade macia da sua trompete com surdina, a sua melodia intimista e nostálgica, sempre foi possível escutar com deleite o saxofone luminoso de Gary Bartz, a principal estrela da noite.

Não acabou por isso da melhor forma esta edição do Matosinhos em Jazz, que, apesar da aparente opulência do seu cartaz, não esteve à altura da quantidade de público que rumou à sala de concertos da Exponor. Combinando prestações de músicos nacionais - anteontem a responsabilidade esteve a cargo da brilhante dupla de pianos de Mário Laginha e Bernardo Sassetti - com estrelas internacionais, o festival consolida a cada ano que passa o seu estatuto de referência, mas nem os esforços da organização conseguem por vezes dissimular a sensação de que o mundo do jazz se move cada vez mais num espaço fechado. O concerto de anteontem foi disso um exemplo cabal.

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