A criança do Lapedo já tem um rosto

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Depois do trabalho científico de recriação dos ossos da cabeça, a equipa de uma televisão inglesa quis fazer uma ilustração da cara do menino que viveu há pelo menos 24 mil anos DR

À criança do Lapedo foi dado um rosto. Dois cientistas estrangeiros fizeram com que a criança, que viveu há 24 ou 25 mil anos, parecesse real, através da reconstituição a três dimensões do crânio. Depois desse trabalho, em que as imagens tridimensionais dos ossos da cabeça foram tratadas em computador, os cientistas reconstituíram as partes moles da cara, como os músculos e a pele. O passo seguinte foi feito por um ilustrador científico: dar-lhe um rosto, para que tivesse uma aparência mais humana do que um mero amontoado de ossos fragmentados ou uma cabeça coberta só com pele.

Durante a realização de um documentário sobre a criança do Lapedo para a Universidade Aberta em Inglaterra, a equipa da televisão inglesa Anglia partiu do trabalho de reconstituição científica do crânio e pediu ao ilustrador científico Ian Claxton para fazer uma recriação artística do rosto. Pôs-lhe os cabelos e os olhos, escolheu uma cor para eles e para a pele e deu-lhe expressão facial.

A sequência de imagens publicadas aqui foi retirada desse documentário, intitulado "A criança do Lapedo", onde se conta a história e a importância mundial da descoberta - em Novembro de 1998, no Vale do Lapedo, Leiria - do esqueleto desta criança de quatro anos. Até à penúltima imagem trata-se de trabalho científico de Christopher Zollikofer e Marcia Ponce de Léon, especialistas em reconstituição tridimensional, da Universidade de Zurique, na Suíça. A última imagem, embora baseada em ciência, já é uma visão artística. "A cor dos cabelos e dos olhos e a expressão facial é a componente artística", sublinha João Zilhão, presidente do Instituto Português de Arqueologia (IPA), em Lisboa, que estuda o esqueleto da criança.

O trabalho de reconstituição do crânio e do próprio rosto é mostrado no documentário, concluído na Primavera de 2001 e também já transmitido pela BBC. Para chegar até ao momento em que a criança adquire uma aparência humana, capaz de despertar emoções em quem olha para a imagem, houve horas de suor dos cientistas.

O esqueleto foi ao hospital

Para começar, o crânio da criança teve de ir ao hospital, ao serviço de radiologia do Curry Cabral, em Lisboa. Cerca de cem ossinhos fragmentados da cabeça estavam montados sobre pauzinhos de bambu, para terem a forma do crânio - mas há muitos que faltam, sobretudo a parte do maxilar superior, diz a antropóloga Cidália Duarte, do IPA, que estuda o esqueleto. "Temos 240 ossos tão pequenos que não conseguimos fazer a colagem", diz. "Era necessário fazer a reconstituição, porque o crânio está completamente espalmado. Os pedacinhos do crânio ficaram deformados, por isso a reconstituição era a única maneira de saber como ele era."


No hospital, fez-se uma tomografia axial computorizada (TAC), para obter imagens tridimensionais do crânio. Depois, as imagens foram enviadas para Christopher Zollikofer (neurologista) e Marcia Ponce de Léon (antropóloga), que utilizaram modelos da antropologia forense, tal como a polícia faz para identificar os restos mortais de uma vítima desconhecida. Só que a imagem da criança foi construída em computador, enquanto as técnicas tradicionais consistem na produção de modelos reais com barro.

Geralmente, a reconstrução de um rosto baseia-se na análise de milhares de cadáveres, em que se vê a variação em determinadas populações humanas da massa muscular e da gordura em certos pontos do esqueleto, por exemplo nas bochechas. "A técnica é bastante engraçada. O que a polícia faz é pôr círculos de borracha nesses locais específicos, que têm a espessura que corresponde à norma de tecido muscular e mole em determinadas populações. Depois uma banda de barro liga esses pontos e cria uma imagem do rosto", explica Cidália Duarte. Os lábios são das partes mais difíceis de reconstituir, porque são só músculos, sem nenhuma ligação ao osso. A ponta do nariz também.

Como há características nos rostos muitos variáveis - por exemplo, os olhos podem ser azuis, castanhos ou pretos, o que muda muito a aparência -, a polícia cria imagens de diversos rostos possíveis baseadas na reconstituição de um determinado crânio. São imagens a três dimensões, que o computador faz hoje. E vê se alguma se encaixa na lista de pessoas desaparecidas.

No caso da criança do Lapedo, Christopher Zollikofer e Marcia Ponce de Léon começaram por usar imagens tridimensionais dos crânios de duas crianças, que permitiram quantificar a relação entre o esqueleto e os tecidos moles. Em seguida, combinaram essa informação para ter uma morfologia média, resultando assim uma criança virtual. Partindo do pressuposto de que existia a mesma relação entre o osso e os tecidos moles da criança do Lapedo, um programa informático revestiu o crânio com os supostos músculos, gordura e pele para chegar ao rosto.

Mas foram mais longe do que a reconstituição do crânio da criança do Lapedo, e fabricaram três réplicas reais. Uma virá para Portugal, informa João Zilhão. A passagem do crânio virtual a real também foi comandada pelo computador, em que um laser fabrica um protótipo numa resina acrílica translúcida.

É nesta parte que termina a ciência e começa a imaginação. O documentário da Anglia, produzido e realizado por Trevor Showler, revela uma ilustração da cara da criança do Lapedo, primeiro de olhos fechados e depois abertos. São castanhos claros, tal como os cabelos. "A ilustração da criança usa meticulosamente a reconstrução científica no computador. As forma do rosto, do nariz e dos maxilares são, tanto quanto possível, cientificamente rigorosas. O tom da pele, a cor e tamanho dos cabelos apenas podem ser presumidos", diz ao PÚBLICO Trevor Showler.

Será que Christopher Zollikofer e Marcia Ponce de Léon também acham que a ilustração não se afasta do que dizem os ossos? "De facto, pode estar muito perto da realidade. Porém, cada reconstituição artística introduz muitos conceitos artísticos, consciente ou inconscientemente, no resultado final", dizem.

Por sinal, a criança parece triste, pela expressão dura da boca. "Na altura, não tivemos consciência de que a criança tinha uma cara triste. Pensámos que era uma expressão neutra apropriada", afirma Trevor Showler.

"Devia estar a pensar no enigma dos neandertais. Como é um problema complicado, está sorumbática", brinca João Zilhão. Ao tom brincalhão do investigador subjaz, porém, uma questão mais séria sobre a evolução humana: o desaparecimento do homem de Neandertal, há 28 mil anos na Península Ibérica, e a sua relação com os homens modernos, a espécie a que pertencia a criança do Lapedo e a nossa própria. Será que se cruzaram e esta criança é um descendente híbrido, que prova isso mesmo? A narradora do documentário deixou uma pergunta: "É esta a cara de uma criança híbrida?".

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