Entrevista a Helena Sá e Costa publicada em 25-05-1996

A pianista e professora Helena Sá e Costa é hoje homenageada pelo Porto. A Câmara atribui-lhe a medalha de honra da cidade; a Fundação Engº. António de Almeida edita uma biografia, escrita por Filipe Pires. Dezassete dos seus alunos vão mostrar-lhe, ao piano, o fruto dos seus ensinamentos. A grande senhora da música está feliz.

Faz amanhã 83 anos que Helena Sá e Costa nasceu, no Porto, no seio de uma família de artistas da música — dos quais o que mais se destacou foi o pai, o compositor e pianista Luís Costa. Mais de oito décadas depois, a pianista e professora que formou e marcou várias gerações de músicos e melómanos continua a surpreendê-los e a contemplá-los com uma energia e uma generosidade invulgares. Num intervalo entre o vaivém Porto-Guimarães (por causa dos Encontros da Primavera, que dirige), a preparação de uma viagem à Covilhã (onde vai presidir ao júri do regressado concurso de música daquela cidade) e a atenção aos alunos que continuam a frequentar a sua casa, Helena Sá e Costa falou ao PÚBLICO da homenagem que esta tarde lhe vai ser prestada no Porto. E recordou histórias da “grande família da música”, de que é uma figura maior.

PÚBLICO —

Vai hoje ser homenageada, na presença dos seus ex-alunos, e com direito a um livro biográfico...

HELENA SÁ E COSTA —

Sim. Fiquei mesmo muito confusa quando o presidente da Fundação António de Almeida, dr. Aguiar Branco, me comunicou que iam fazer uma festa e lançar um livro. E fiquei muito contente com a escolha de Filipe Pires para o escrever, porque tenho a maior estima e admiração por ele. Mas fiquei surpreendida com a notícia de que iam fazer a minha biografia. Pessoalmente, tenho muitas coisas a contar, porque vivi até hoje muitos anos e aconteceram muitas coisas...

... que dariam um livro muito extenso. Não pôs a hipótese de escrever as suas memórias?

Eu, desde muito nova, escrevi algumas impressões, mas não tinha muito tempo para dar continuidade...

E tem isso tudo guardado?

Tenho tudo na gaveta e, se Deus me der vida e saúde, um dia ainda posso publicar...

Na homenagem de hoje vai ouvir tocar os seus alunos. Entre eles há grandes pianistas já reconhecidos como tal.

Todos eles. Realmente, são nomes já conhecidos do nosso Porto.

Quantos alunos teve ao longo da sua carreia?

Muitos, muitos, muitos. É difícil contar. Alguns foram alunos no Conservatório de Lisboa, outros no Porto, para além dos concuros. Há muitos que vêm a casa...

Gosta mais de trabalhar com eles em casa ou na escola?

Gosto das duas coisas. Em casa, é muito exaustivo, estou cara a cara com os alunos, embora de vez em quando também faça pequenos círculos. Num curso, naturalmente, tenho a preocupação de falar para todos. É outro tipo de ensino. Mas gosto muito dessa alternância.

Há quantos anos começou a ensinar?

Tinha 16 anos. Mas não foi de uma maneira muito intensa. Os meus pais não queriam, para eu ter tempo também para as minhas coisas e para as outras matérias da cultura geral. Mais tarde fui nomeada para o Conservatório de Lisboa, com vinte e poucos anos...

Quais são as diferenças entre as técnicas de ensino e o interesse dos alunos entre essa altura e a actualidade?

Hoje exige-se mais profissionalmente; a concorrência é muito grande. Estamos facilmente em contacto com tudo o que se passa; alunos meus que vão estudar ao estrangeiro, ou ouvir festivais; e há vários mestres que vêm aí fazer cursos de pequena duração. Noutros tempos, o movimento não era tão grande. O aluno era-o de um determinado professor, e fazia uma formação muito a sério com esse mestre. Hoje em dia, as coisas passam-se com mais velocidade e diversidade.

Como é que vê actualmente o ensino da música no nosso país?

Actualmente, multiplicaram-se as escolas particulares em várias cidades, e isso é muito importante. Há muita gente que se dedica ao ensino, porque, como sabe, a carreira musical em Portugal não é tão grande como desejaríamos. Em todas as escolas há alguns nomes muito bons, pessoas bem formadas e que contribuem muito para o desenvolvimento nessas cidades.

Falemos agora um pouco da sua carreira de pianista. A sua biografia diz que o primeiro concerto foi aos cinco anos. Lembra-se?

Exactamente. Foi numa audição de alunos dos meus pais. Foi no salão do Centro Comercial do Porto, junto aos Leões, ou no salão da Galeria de Paris. Eles faziam todos os anos várias audições dos alunos, desde os mais pequenitos — era o meu caso — até aos mais velhos.

Correu bem o primeiro concerto?

As pessoas acharam uma certa graça por eu ser miúda. Aos 12 anos, então, já era a sério; uma vez fiz uma noite inteira, e a minha mãe tocou comigo uma peça a dois pianos: uma sonata de Mozart. Depois as coisas aconteceram.

E o primeiro concerto no estrangeiro?

Foi em Paris, com a orquestra do maestro Edwin Fisher — ele fazia uma série de grandes concertos de Bach em várias cidades da Europa —, em 1936. Mas sem orquestra fiz, primeiro, uma “tournée” de 15 concertos com a minha irmã em Espanha.

Dos grandes músicos e maestros com quem tocou, há alguém de que guarde memória especial?

O maestro americano Efrem Kurz está muito na minha memória. É que, não há muitos dias, um programa da rádio transmitiu uma gravação em que eu toquei com ele, no Tivoli, em Lisboa, uma obra muito importante de Beethoven (o quarto concerto). Foi para mim uma surpresa — porque foi há já 32 anos — ter podido ouvir outra vez uma coisa que, afinal, ficou gravada, não em disco, mas no arquivo da rádio.

Não tem muitos discos gravados?

Tenho poucos. Gravei um em Budapeste, com a Orquestra Sinfónica Húngara: uma peça de Fernando Lopes-Graça: “Concertino”. É uma obra que Lopes-Graça me dedicou e que eu tinha já tocado, em primeira audição, no Tivoli, nos Festivais Gulbenkian, com o maestro Silva Pereira. Foi um grande sucesso de uma obra portuguesa. Tenho outros dois discos: “O Cravo Bem Temperado”, de Bach...

Parece que esse disco deu origem a uma certa polémica, pela interpretação ao piano de uma obra escrita para cravo.

Bach viveu há mais de 200 anos, portanto, na época do Barroco. Mas, como génio que era, ele transcende a sua época, foi mais moderno do que se previa. Ele não tinha o piano de hoje à sua disposição, tinha o cravo, o clavicórdio — instrumentos muito bonitos e peculiares —, mas sabe-se que ele queria qualquer coisa mais, andava à procura de um instrumento ideal. É muito curioso notar que, às vezes, o mesmo tema ele escrevia-o para um instrumento; depois aparecia numa cantata, na voz; depois aparecia numa orquestra de câmara... Quer dizer que Bach não escrevia directamente para um instrumento; fazia música. Para ele, a música era qualquer coisa de muito pessoal, estava para além de qualquer instrumento. Bach pensava e sentia a música. Hoje em dia, está-se a viver muito as coisas historicamente: por exemplo, tocar o que é barroco só com instrumentos barrocos...

O que pensa dessa moda?

É interessante. Mas os génios não devem estar sujeitos aos instrumentos da sua época. Hoje, quando temos instrumentos, meios de transporte e uma maneira de ver e sentir tão diferentes daquela que era mais usual há dois séculos... A música tem que acompanhar um bocadinho isso. Não podemos ficar com a música estática e demasiado histórica.

Bach é o seu compositor preferido?

É, certamente. Mas, claro, temos um Beethoven, um Mozart, um Schubert... e um Chopin, que para piano escreveu incomparavelmente bem. Felizmente há muitos. Mas tenho também uma paixão muito grande — que já é de família — por Brahms. E há também os do século XX; e sempre gostei muito dos franceses: Debussy, Ravel...

Como vê a vida musical no Porto actualmente?

É um bocado difícil fazer um “aperçu” do que se passa. Noutros tempos, havia duas sociedades magníficas — o Círculo de Cultura Musical e o Orpheon Portuense —, que traziam ao Porto, com regularidade, as maiores sumidades: Shostakovich, Arrau... e os próprios grandes compositores, como Ravel, por exemplo. Estávamos a par do que se passava na Europa. Quando havia esses concertos, nós preparávamo-nos muito bem, sabíamos com antecedência o programa, enfim, gozávamos ao máximo a oportunidade. Hoje em dia, infelizmente, esse movimento não é tão intenso. Apesar de tudo, há uma grande quantidade de concertos. Temos bons maestros, bons solistas e muita gente nova que merece aparecer. O principal é que haja durante o ano uma regularidade de concertos ao vivo — para além dos discos ou gravações, que muita gente agora ouve. Tudo tem o seu lugar, mas a música em directo, uma audição viva, com o quadro humano, é um grande acontecimento. Enfim, muita coisa acontece, felizmente.

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