Estratégia para testar em massa ainda não saiu do papel

Unidades de cuidados continuados, cadeias, lares, instituições de acolhimento de menores e locais de trabalho com maior risco de transmissão continuam sem realizar os rastreios com testes rápidos de antigénio de 14 em 14 dias como deveria acontecer desde 15 de Fevereiro. Rastreio que vai testar perto de 600 mil pessoas nas escolas arranca na terça-feira.

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Daniel Rocha

Um mês depois de ter sido anunciada a testagem em massa de vários locais de potencial risco de contágio do novo coronavírus ou instituições que acolhem populações vulneráveis ao mesmo, a estratégia quase não saiu do papel. Unidades de cuidados continuados, cadeias, lares, instituições de acolhimento de menores ou refugiados e locais de trabalho com maior risco de transmissão continuam sem realizar os rastreios com testes rápidos de antigénio de 14 em 14 dias que estão previstos na norma actualizada pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) a 11 de Fevereiro e​ cujas alterações deveriam ter entrado em vigor três dias depois.

O atraso na concretização da mudança de estratégia não é explicado pelo Ministério da Saúde, que, no entanto, não o nega. Questionada pelo PÚBLICO sobre vários aspectos das novas regras o gabinete da ministra Marta Temido apenas respondeu: “A estratégia está a ser operacionalizada sectorialmente, entre o Ministério da Saúde e outras áreas governativas e será oportunamente divulgada.” Antes o PÚBLICO já mandara as mesmas perguntas para a DGS, que remeteu as explicações para o ministério. Uma das dúvidas que ficou sem resposta foi se já havia algum levantamento dos locais de trabalho com maior risco de transmissão ​e se o Governo já definira, nestes casos, quem iria pagar os testes. 

Das várias entidades envolvidas nos rastreios preventivos, os hospitais são praticamente os únicos que estão a aplicar as novas regras e mesmo nesse grupo, que possui laboratórios próprios para realizar os testes, nem todos estarão a cumprir. O PÚBLICO contactou uma unidade que há quatro semanas estava a adaptar-se à nova estratégia e esta não respondeu se já tinha as novas medidas no terreno. Alguns, no entanto, já tinham começado a testar todos os doentes internados ao terceiro e quinto dia após o exame na admissão e depois periodicamente a cada cinco dias ou a cada sete dias ainda antes de a DGS ter publicado as novas orientações.

Na próxima terça-feira arrancam os rastreios nas escolas públicas e privadas, onde serão testados todos os professores e funcionários dos vários níveis de ensino desde o pré-escolar ao 12.º ano numa operação que irá igualmente incluir os alunos do secundário — só na primeira vaga de testes devem ser realizadas perto de 600 mil análises. Também serão contempladas as creches, que a par do pré-escolar e do primeiro ciclo do ensino básico, abrem na próxima segunda. A testagem alarga-se à medida que forem abrindo os vários níveis de ensino, (2.º. e 3.º ciclos do básico a 5 de Abril, secundário a 19 de Abril) e a repetição das análises está dependente da incidência do novo coronavírus em cada concelho. Serão repetidas duas semanas após o primeiro teste mas apenas nos municípios com incidência cumulativa a 14 dias superior a 120 casos por cada 100 mil habitantes. 

Convém recordar que nas escolas públicas a operação de testagem preventiva com testes rápidos de antigénio tinha começado no final de Janeiro, ainda com as escolas abertas, e manteve-se durante o confinamento nos estabelecimentos de ensino que acolheram os alunos filhos dos trabalhadores dos serviços essenciais. Foram realizados pela Cruz Vermelha, responsável por este trabalho, mais de 63 mil testes, em pouco mais de mês e meio. Apenas 76 deram positivo, (o que dá uma percentagem de positivos de 0,12%), indica Gonçalo Órfão, que coordena o programa de testes da Cruz Vermelha.

Os lares também já estão a testar preventivamente há alguns meses, mas com uma periodicidade e com um âmbito diferente do que está previsto na norma da DGS. As novas regras determinam que tanto residentes como profissionais devem ser testados a cada 14 dias, mas não é isso que está a acontecer. 

O padre Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS), que representa 900 estruturas residenciais para idosos, explica que existe desde Dezembro um protocolo com a Cruz Vermelha que permite aos lares pedirem àquela entidade para testar os seus profissionais, a custo zero. “A regra é de 15 em 15 dias metade dos trabalhadores serem testados. O que significa que o universo total de funcionários é testado uma vez por mês”, especifica Lino Maia. Mas as análises não abarcam os utentes, nem são realizadas a todos os profissionais de duas em duas semanas como estipulou a DGS. 

Questionado sobre se as misericórdias estão a cumprir estas regras, Manuel Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), é categórico: “Não.” O dirigente também não sabe quando é que os rastreios vão começar estando, neste momento, a ser preparado um protocolo com a Cruz Vermelha, semelhante ao que já existe com a CNIS, e que também será assinado com os representantes das cooperativas do sector social.

Tanto Lino Maia como Manuel Lemos garantem que o programa de testes sempre foi suportado pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), que tanto contratou laboratórios privados como fez acordos com entidades como a Cruz Vermelha, que recebeu um financiamento internacional para realizar 500 mil testes rápidos de antigénio, perto de 150 mil dos quais já foram efectuados.

Centros de acolhimento não testam regularmente...

Manuel Lemos, que representa igualmente misericórdias que possuem centros de acolhimento para menores e para refugiados, não tem conhecimento que estejam a decorrer rastreios regulares nestas instituições."Muitas, aliás, têm contactado a união a perguntar se sabemos alguma coisa sobre estes testes”, refere.

Contactado pelo PÚBLICO, o MTSSS remeteu as questões sobre o cumprimento das novas regras para a Saúde. Mesmo assim, sublinhou que já foram efectuados cerca de 260 mil testes em lares de idosos desde Março do ano passado. “Na segunda fase deste programa de testagem preventiva, iniciado em Outubro de 2020 e ainda em curso, foram feitos 142 mil testes aos trabalhadores em 1600 lares”, afirma a tutela da Segurança Social. Sabendo-se que existem em Portugal mais de 2500 lares legais, nos quais estão institucionalizadas perto de 100 mil idosos e onde trabalham 60 mil profissionais, é fácil concluir que muitos nunca foram testados pelo Estado. Mesmo assim, estes exames, sublinha o ministério, permitiram detectar “casos positivos em 834 lares'’.

O presidente da União das Mutualidades Portuguesas, Luís Alberto Silva, confirma numa resposta escrita que a “testagem regular e em massa dos utentes e dos funcionários das estruturas residenciais para idosos e dos lares, por razões alheias às instituições sociais, não se concretizou ainda no terreno”. E explica que a testagem ocorre fundamentalmente com a detecção de um caso suspeito numa instituição. “Segundo números do próprio Governo, no início deste mês tinham sido reportados pelas autoridades regionais de saúde 275 surtos activos, essencialmente no Centro e Sul do País, mas com maior prevalência em Lisboa e Vale do Tejo (205)”, descreve o líder das mutualidades.

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Os três responsáveis do sector social notam que a maioria dos utentes que residem nas suas instituições já foram vacinados, o que lhes permite olhar de uma forma mais tranquila para a pandemia. Mesmo assim, Manuel Lemos refere que já ocorreram três surtos em lares das misericórdias, onde utentes e trabalhadores já estavam vacinados. Apesar de reconhecer que os casos foram menos graves que anteriormente, o dirigente da UMP realça que sabemos muito pouco sobre a covid-19 e sobre os efeitos da vacinação. “Logo, temos que continuar muito alerta”, conclui Manuel Lemos.

... cuidados continuados também não

Quem nunca teve direito a rastreios preventivos foram as Unidade de Cuidados Continuados, que também possuem um perfil de utentes vulnerável ao SARS-CoV-2. Isso mesmo testemunha José Bourdain, presidente da Associação Nacional dos Cuidados Continuados. “Fiz uma ronda pelos nossos associados e só um está a ser testado de duas em duas semanas pela DGS. Nunca tivemos testagem preventiva, apenas se faziam análises quando havia um caso positivo”, afirma. Mas a lacuna não impediu um resultado bem sucedido no combate à pandemia, com poucos surtos e poucos mortos, números que Bourdain não consegue contabilizar. O segredo é simples. Desde 2015 que os hospitais passaram a enviar para estas unidades doentes infectados com bactérias resistentes, altamente contagiosas, o que obrigou a uma preparação para este tipo de casos.

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Na próxima terça-feira arrancam os rastreios nas escolas públicas e privadas, onde serão testados todos os professores e funcionários dos vários níveis de ensino desde o pré-escolar ao 12.º ano eduardo costa/Lusa

“A maior parte dos nossos profissionais e até o pessoal das cozinhas estava habituado a lidar com os riscos da contaminação, respeitando regras e procedimentos para evitar qualquer contágio”, resume Bourdain. Essa experiência, diz, tornou-se essencial no sucesso da contenção da pandemia nas nossas unidades. 

O cenário é bastante diferente do que o que se viveu nas prisões onde ocorreram vários surtos que infectaram mais de mil reclusos e acima de 500 funcionários. Também aqui não existem rastreios preventivos regulares. Os serviços prisionais esclarecem ao PÚBLICO que foram realizados no último ano cerca de 23.100 testes, tanto nas cadeias (onde estão cerca de 11.300 reclusos) como nos centros educativos (onde estão perto de 100 jovens). A estratégia, essencialmente reactiva, ainda é a que está prevista nos planos de contingência que foram elaborados de acordo com as normas da DGS. “Sempre que um recluso/jovem internado apresenta sintomatologia compatível com a covid-19 é testado. Caso o resultado seja positivo procede-se à testagem de todos os reclusos e trabalhadores do estabelecimento prisional/centro educativo em que se encontra”, explica a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. 

Mas também há alguns testes preventivos, mas são quase todos pontuais. Os reclusos vindos da liberdade são objecto de teste rápido à entrada e de teste PCR após a quarentena; os que tiveram apenas uma deslocação ao exterior fazem um testes rápido passado cinco dias, os que foram transferidos de cadeia fazem teste antes de sair. A única testagem regular é feita aos trabalhadores de empresas externas: “Semanalmente são sujeitos a testes rápidos de diagnóstico de SARS-CoV-2 todos os prestadores de serviço dos estabelecimentos prisionais e dos centros educativos.”

Gonçalo Órfão, da Cruz Vermelha, defende que só a realização de testes em massa permite detectar surtos de forma precoce e controlar a progressão da pandemia. Mas reconhece que a falta de recursos humanos para fazer as colheitas pode ser um problema. Por isso, quando as suas equipas estiveram a testar em lares aproveitaram a ocasião para dar formação prática aos profissionais de saúde que lá trabalham habitualmente — a parte teórica tinha sido feita antes num curso online. “Formámos 693 profissionais de saúde em unidades de cuidados continuados e em estruturas residenciais para idosos na técnica de zaragatoa e testes rápidos de antigénio e outros 128 em clubes e federações desportivas”, contabiliza Gonçalo Órfão.

O coordenador do programa de testes para o novo coronavírus da Cruz Vermelha acredita, contudo, que a tecnologia será essencial para concretizar a estratégia de testar em massa. Os testes rápidos de antigénio realizados com uma simples amostra nasal que evita o recurso às incómodas zaragatoas que recolhem secreções da nasofaringe, tornarão mais fácil e rápida a testagem e permitirão a qualquer um realizar um exame para detectar o SARS-CoV-2. Mesmo em casa.

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