Duas guitarras mano a mano com a Madeira e o jazz

Os irmãos André Santos e Bruno Santos lançam esta terça-feira o terceiro volume de Mano a Mano, disco onde exploram as sonoridades do jazz com guitarras eléctricas, rajão e braguinha. E vão estar no Bons Sons, em Agosto.

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André Santos e Bruno Santos, irmãos na vida e no jazz DAVID CACHOPO

Nasceram ambos no Funchal, com uma diferença de dez anos, Bruno Santos em 1976 e André Santos em 1986. Guitarristas imersos no jazz desde há anos, com carreiras firmadas no meio, têm a par dos seus trabalhos a solo ou em projectos colectivos uma parceria que já resultou em vários espectáculos e três discos. O mais recente (Mano a Mano, Vol 3) chegou às lojas esta terça-feira e junta, na linguagem do jazz, instrumentos tradicionais madeirenses como rajão e braguinha às guitarras eléctricas que tocam desde a juventude.

Juventude que viveram ambos no Funchal, antes de rumarem a Lisboa. Bruno: “Ouvia muita música pop, porque temos um tio que era um grande aficionado da música pop, um coleccionador, comprava discos todas as semanas na única loja que havia disponível. Depois, influenciado por alguns colegas do liceu, comecei também a ouvir rock: Jimi Hendrix, Led Zeppelin, Deep Purple.” Teve uma banda (um quinteto), chamada Quarto Quadrante, que durou quatro ou cinco anos. “Depois comecei a ter aulas no Conservatório no Funchal, entusiasmei-me com alguns discos de jazz, fui para o Hot Clube em 1998 e por lá fiquei. Comecei a dar aulas e nos últimos anos tenho dirigido a escola do Hot.” Mas antes, numa passagem pelo Algarve, teve aulas com o contrabaixista José Eduardo.

Ainda no Funchal, foi o facto de Bruno ter aulas particulares com o seu professor de guitarra clássica no Conservatório que acelerou essa escolha. “Ele era uma pessoa muito próxima do jazz, gostava de bossa nova, e foi por aí que comecei a ouvir outras coisas.” Por exemplo: “Lembro-me de ouvir um disco do Pat Metheny, que era uma coisa mais próxima do rock, e depois comecei a ouvir coisas mais clássicas, como Wes Montgomery. E descobri as big bands, a orquestra de Duke Ellington, Bill Evans.”

Hendrix, Monk, Mutrama

André, dez anos mais novo, começou por ser “um fã dos Quarto Quadrante”, a banda do irmão. “Ele ia mediando as coisas. De início também comecei por ouvir rock, Jimi Hendrix, depois Rage Against The Machine, já nos anos 1990. Mas também de lembro de receber um walkman com uma cassete do João Gilberto e andar a ouvi-la de forma obsessiva. Comecei a experimentar a guitarra, primeiro a acústica e depois a eléctrica.”

Com Bruno já em Lisboa, André faz o mesmo caminho em 2006. “Também fui para o Hot. O meu irmão oferecia-me de vez em quando discos de jazz e o primeiro que ele me deu nem era dos mais óbvios, era o Thelonious Monk com o John Coltrane, ao vivo.” Com os pais, assistira em Lisboa ao primeiro concerto que Bruno deu no Hot, uma oportunidade para comprar ainda mais discos, entre os quais o famoso Miles Davis At Carnegie Hall. “A partir daí, o bichinho do jazz foi puxando. Havia um curso na Madeira, uma espécie de sucursal do Hot Clube no Funchal, em que todos os fins-de-semana vinham professores de Lisboa para dar aulas. Entrei nesse curso, tinha aí uns 18 anos, ao mesmo tempo que entrei em engenharia informática na Universidade da Madeira. Foi um ano crucial.”

Ficaram, ambos, ligados ao Hot e ao jazz. Mas sem se desligarem das origens geográficas do seu nascimento. Ainda em 2018, André esteve à frente do projecto Mutrama, Música Tradicional Madeirense Revisitada, com um espectáculo no São Luiz e um disco. E o projecto Mano a Mano, que Bruno e André iniciaram em 2014 e já vai no terceiro volume, agora lançado. Começou por ser uma brincadeira, resultante dos ensaios a dois, mas tornou-se uma coisa mais séria quando se aperceberam de que havia ali qualquer coisa.

“Lembro-me de tocar numas jam-sessions no Hot Clube”, diz André, “e de nos dizerem que havia uma química quanto tocávamos juntos. Por isso começámos a fazer uns primeiros concertos em sítios pequenos, bares, clubes.” E foi isso que os levou ao projecto Mano a Mano e ao primeiro disco de instrumentais, preenchido maioritariamente com versões. O segundo, editado em 2017, já tinha alguns originais. E o terceiro, recém-lançado, é quase todo preenchido com originais, assinados por Bruno e por André, exceptuando os temas Noites da Madeira, do pianista e compositor madeirense Tony Amaral (1938-2016) e Stardust, do também pianista e compositor (mas norte-americano) Hoagy Carmichael (1899-1981).

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Capa do disco Mano a Mano Vol 3 DÁRIO GOMES

Homenagens madeirenses

No disco, além das guitarras eléctricas mais ligadas ao jazz, Bruno e André tocam também instrumentos tradicionais da Madeira, como o braguinha e o rajão. E num dos temas que escreveram propositadamente para o disco, Valsa para CDV, homenageiam explicitamente um exímio instrumentista madeirense, tocador de machete e de machetinho e também compositor erudito, Cândido Drumond de Vasconcelos (que terá morrido em 1875). André, que assina a composição, descobriu-o em Amesterdão, quando ali esteve a estudar no Conservatório, onde tirou o mestrado em jazz. “Tinha de escolher um assunto para a minha tese e escolhi os cordofones madeirenses. Apeteceu-me ir buscar uma coisa das minhas raízes e mergulhar nessa história e explorá-la. Foi aí que foi encontrar o Cândido Drumond de Vasconcelos, compositor que eu não fazia ideia que existia e que é muito pouco conhecido na Madeira. Conheci-o graças à associação Xarabanda, que também está ligada à Mutrama, que recentemente publicou um manuscrito, com edição de Manuel Morais [músico e musicólogo], de Cândido Drumond de Vasconcelos. A primeira música que compus para a minha tese, foi ao braguinha e foi essa valsa. É a nossa homenagem.”

Já a versão de Noites da Madeira é, diz André, “uma homenagem não só ao Tony Amaral [seu autor] mas também ao Max e ao guitarrista que tocava com ele, o Carlos Menezes (1920-2011), que dizem que foi o primeiro guitarrista eléctrico português. Tinha uma ligação muito forte ao jazz.” Bruno acrescenta: “O Max, segundo dizem, era presença assídua nas jam-sessions do Hot Clube. “E o Carlos Menezes também. Eu ainda toquei com ele, num concerto de homenagem que já lhe fizeram. É um histórico.”

Nat King Cole, ukulele e rajão

A versão de Stardust deveu-se a um acaso, conta Bruno. “Há uma versão de que eu gosto particularmente, que é a do Nat King Cole, é brutal. Mas há uns tempos ouvi por acaso uma versão do Stardust tocada em ukulele e pensei que podia fazer sentido em rajão. Então fizemos uma mistura dessa versão do ukulele com um bocadinho da do Nat King Cole.” 

Mano a Mano Vol 3, sendo o terceiro desta série, não deve ser o último. “Ainda temos muito por onde andar”, diz André. Bruno acrescenta: “Neste volume fizemos um upgrade para o repertório de originais, mas há outras ideias na calha. E pensar a dois ajuda muito.”

André Santos e Bruno Santos estarão, Mano a Mano, no dia 30, dia internacional do jazz, a apresentar este seu disco na APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) em Lisboa, às 19h30. Em Maio, no dia 6, estarão no Funchal, na festa da Flor, dia 10 estarão no Porto, na Ordem dos Médicos, no ciclo Jazz na Ordem (22h), e dia 25 actuarão em Alhandra. E, tal como foi anunciado ao início da tarde desta terça-feira, integram o cartaz da edição de 2019 do festival Bons Sons, que decorrerá entre 8 e 11 de Agosto na aldeia de Cem Soldos, em Tomar. 

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