É difícil ser turco

Apesar da completa hegemonia do Presidente Tayyip Erdogan, que acumula todos os poderes e asfixia a informação livre, a política turca não morreu. Os inquéritos confirmam o reforço do nacionalismo mas também uma clara defesa da democracia e das liberdades. As eleições deste domingo são mais um desafio ao regime autoritário.

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A política não morreu, a história não acabou. As eleições presidenciais e legislativas turcas deste domingo são mais um teste ao poder autocrático do Presidente Recep Tayyip Erdogan e à resistência da democracia política. Um estudo recente confirma a força do nacionalismo, com uma “crescente obsessão pela soberania nacional” e mais desconfiança perante o Ocidente. Mas também revela “um profundo orgulho pelas reformas democráticas”. Este misto de sentimentos contraditórios e as fundas divisões perante Erdogan sugerem que “a política turca permanecerá incerta e crescentemente agitada nos próximos anos”.

A história política turca é marcada por grandes viragens. O ciclo democrático e europeísta aberto em 2002 é hoje perfeitamente explicável, mas foi uma surpresa. A primeira década de poder do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) e do seu líder, Recep Tayyip Erdogan, foi deslumbrante — “o melhor Governo que a Turquia jamais teve”. A partir de 2011, Erdogan decide ser Presidente e mudar o regime. Começa uma deriva autoritária. A pergunta passou a ser: sobreviverá a democracia turca a Erdogan?

Como se chegou aqui?

Quando o autoritarismo está no apogeu, convém olhar para as fissuras do regime. E lembrar como “se chegou aqui”. A conversão à democracia dos islamistas que fundaram o AKP foi uma necessidade. A sua aposta na Europa foi uma alavanca decisiva para a democratização e para a demolição de uma democracia submetida à tutela militar. Para lá da democratização e do sucesso económico, a Turquia tornou-se um modelo para o mundo muçulmano.

A derrapagem começa após a esmagadora vitória eleitoral do AKP em 2011. Erdogan decide mudar o regime e estabelecer o seu poder pessoal. Um momento-chave na viragem é o conflito com o movimento Hizmet, do religioso sufi Fethullah Gülen. Este é acusado de tentar um “golpe de Estado” através dos seus membros na polícia e na magistratura. O “golpe” era uma investigação judicial à corrupção no AKP, incluindo membros do Governo e os filhos de Erdogan. Foi o pretexto para uma vaga de repressão. Milhares de magistrados, polícias são demitidos e a liberdade de informação é cerceada.

Em Agosto de 2014, Erdogan é eleito Presidente da República, na primeira volta, com 51,2% dos votos. Mesmo sem revisão constitucional, impõe “um presidencialismo sem contrapesos”, em que o Presidente controla os outros poderes: o legislativo, o executivo, o judicial — e o mediático. Nascia o “sultão Erdogan”.

Após o estranho “golpe de Estado” militar de Julho de 2016, Erdogan conclui a depuração do Estado e de instituições privadas, dos professores aos jornalistas. As eleições deste domingo decorrem com mais de cem jornalistas presos e com 90% dos jornais e dos canais de televisão encerrados ou nas mãos de “amigos” de Erdogan. A Turquia vive desde 2016 em “estado de urgência”.

A revisão constitucional que institui o presidencialismo é aprovada no referendo de Abril de 2017 por 51,4% dos votos, muito abaixo do que Erdogan desejava. Mas só entrará em vigor após novas eleições. Entre as inovações, está a eliminação do cargo de primeiro-ministro. O Presidente da República concentrará todo o poder executivo.

Que pensam os turcos?

Para acelerar a completa concentração do poder, Erdogan anunciou, a 18 de Abril, a antecipação do voto previsto para Novembro de 2019. O novo texto constitucional permite-lhe exercer dois mandatos de cinco anos. Tenciona ser Presidente até 2028?

Outra razão terá sido a vontade de favorecer a reeleição à primeira volta, aproveitando a dispersão da oposição e antes que a instável situação económica se degrade. E precisa de garantir a maioria absoluta no Parlamento. São “eleições vitais” para Erdogan. Mas terá sido surpreendido. Enfrenta cinco concorrentes, um dos quais, Muharrem Ince, do Partido Republicano do Povo (CHP, herdeiro da tradição kemalista), se revelou uma alternativa credível, com trunfos para o forçar a uma segunda volta, em que contaria com o voto de quase todos os outros concorrentes.

As eleições deste domingo serão tratadas noutro texto. Aqui interessa referir alguns dados do estudo acima citado, do think-tank liberal Center for American Progress, publicado em Fevereiro, com base numa amostra nacional de 2453 pessoas, inquiridas em Novembro de 2017.

A primeira constatação é que “os turcos estão profundamente divididos segundo linhas partidárias e ideológicas”, mas também sob outros critérios menos evidentes.

Para começar, 45% dos inquiridos pensam que a situação na Turquia está a caminhar “para pior”, contra 34% que acham que está a caminhar “para melhor”, e, para 17%, “nem melhor nem pior”. É entre os simpatizantes do AKP que o optimismo domina (63% contra 17%). Não se tirem conclusões precipitadas. Quantos aprovam e quantos desaprovam o “modo como Erdogan exerce o seu cargo presidencial”? A aprovação é de 48% (91% entre os votantes do AKP) contra 42%, que têm uma opinião negativa. A repressão após o “golpe de Estado” de 2016 divide ao meio a opinião: “apropriada” para 44%, “desapropriada” para 44%. A aprovação domina nas categorias de ensino mais baixas e a condenação nas mais altas.

No relativo ao nacionalismo, manifestamente fortalecido pela guerra síria, há algumas respostas interessantes. É a Turquia “um líder natural do mundo muçulmano”? Sim, respondem 72%. “As elites económicas e políticas globais têm excessivo poder na Turquia e devem ser limitadas?” Sim, dizem 84%. Orgulho no passado otomano? “É muito importante” para 53% e algo importante para 79%. Um Erdogan “forte é necessário para proteger os interesses turcos”? Sim, na opinião de 55%. Ser muçulmano faz parte da identidade da Turquia?: sim e “muito importante” para 67% ou “importante” para 91%.

Qual a atitude perante os “outros”? Merecem uma opinião “desfavorável” a Rússia (63%), a Europa (73%) ou os EUA (83%). E também os cristãos (69%), os judeus (78%) ou os refugiados sírios (79%).

Há mais dois pontos relevantes. “Os direitos democráticos, como a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, o direito de emitir as próprias opiniões são vitais e não devem ser sacrificados por nenhuma razão.” Esta afirmação merece a concordância de 70% dos inquiridos. Tal como “a defesa dos valores democráticos” é “muito importante” para 59% e “importante” para 86%.

É difícil ser turco.

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