Observações sobre as surpresas das presidenciais francesas

“Talvez, apenas talvez, a França possa ser o lugar onde a vaga populista seja travada", diz Philip Stephens.

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1. Em termos mediáticos, as presidenciais francesas estão polarizadas, na França e na Europa, entre duas figuras que apagam os dois grandes partidos franceses: Marine Le Pen e Emmanuel Macron. “É a mais louca corrida ao Eliseu de todos os tempos”, delicia-se o Corriere della Sera. A hipótese de um triunfo de Le Pen assusta — o ministro alemão Wolfgang Schäuble resume os sentimentos: “Seria o fim!”

No entanto, “sem subestimar as hipóteses de vitória de Le Pen”, o editorialista Philip Stephens ousa escrever no Financial Times: depois do “Brexit” e da eleição de Trump, “talvez — apenas talvez — a França possa ser o lugar onde a vaga populista seja invertida. (...) A França pode surpreender-nos.” Como? Elegendo Macron.

Para lá da fibrilação dos “factos políticos” e das sondagens, as complicações do presente filiam-se em tendências longas e põem em causa o actual sistema político francês. Deixo de lado as cada vez mais decisivas legislativas de Junho. Tudo depende das presidenciais.

2. Comecemos pela Frente Nacional (FN). Com Marine Le Pen, a FN deixou de ser um mero partido de protesto. Conseguindo um notável enraizamento popular e passando a decisiva barreira eleitoral dos 20%, o partido continuou fora da “área do poder”.

A V República foi estruturada numa base bipartidária — dois partidos dominantes, de direita e de esquerda, que se aliam com forças ideologicamente aparentadas. Tudo assenta nos acordos de desistência eleitoral para a segunda volta. Explicam os politólogos que a FN se tornou numa “potência eleitoral”, mas “potência solitária” na medida em que não consegue celebrar acordos. Esquerda e direita estabeleceram um “cordão sanitário” que até hoje a isolou.

3. A ascensão da FN criou uma instável dinâmica tripolar que pôs em causa o equilíbrio das tradicionais alianças. “Tripartidarismo imperfeito” em que nenhum partido se pode aliar com outro — a não ser em acordos pontuais do PS e LR contra a FN. E que, a prazo, cria problemas de legitimidade — a não-representação de uma força com forte peso eleitoral.

Para eliminar o “cordão sanitário”, Marine procura fracturar a direita tradicional, Os Republicanos (LR), e atrair parte do seu eleitorado para vir a formar uma “direita nacional ou patriótica” que, sob sua hegemonia, defrontaria a esquerda.

A FN venceu as eleições europeias de 2014 e conquistou o estatuto de grande partido. E, como as sondagens regularmente confirmam, é quase certa a sua presença na segunda volta das presidenciais. A possibilidade de vitória é muito vaga. Mas o simples facto de ir à “finalíssima” terá dois efeitos: intensificar a crise do partido do candidato eliminado; e criar uma dinâmica nova para as legislativas de Junho. Com uma reserva. O seu projecto de “morte da Europa” será um obstáculo decisivo na segunda volta das presidenciais: os franceses dizem mal do euro, mas não o querem abandonar.

4. A direita — o LR de Nicolas Sarkozy, Alain Juppé e François Fillon —parecia em excelente situação no fim do ano passado. A presidência de François Hollande tinha sido desacreditada pela sua incoerência. Esta não decorre da viragem de 2013 na política económica — Mitterrand fez o mesmo e numa escala muito maior. Decorre da divisão interna do Partido Socialista, em que um número considerável de deputados da ala esquerda funcionou como oposição e bloqueou o executivo.

Com Hollande encostado às cordas, o LR fez as suas eleições primárias e designou como candidato a personagem que se colocou mais à direita, François Fillon. Esta escolha, eliminando Juppé, o mais centrista, tinha uma lógica: unir o partido e captar votos no terreno da FN. E um inconveniente: não conseguir entrar no terreno do centro-esquerda em crise.

De qualquer forma, era uma candidatura antecipadamente “vencedora”. Dado o declínio do PS, Fillon tinha a certeza de passar à segunda volta e aí derrotar Marine Le Pen. A esquerda entraria em depressão. Subitamente, o caso dos empregos da família de Fillon repôs tudo em questão.

Mas ainda é muito cedo para antever as tendências de voto. Se a eleição fosse hoje, Fillon ficaria de fora — divina surpresa para Le Pen poder fracturar o LR.

5. “François Hollande foi entalado pelas duas correntes historicamente antagónicas do Partido Socialista, o socialismo de oposição e o socialismo de governo”, resume Gérard Grunberg, politólogo e historiador do socialismo francês. A unidade do PS é fácil na oposição, em que adopta um programa muito à esquerda; e difícil na governação, em que tem de fazer “compromissos com a realidade”. São estas mesmas duas famílias que se afrontaram nas primárias socialistas: Benoît Hamon, da ala esquerda, bateu Manuel Valls, chefe de fila dos reformistas.

O problema é que a disputa põe em causa a sobrevivência do PS. Valls diz não poder votar no programa radical de Hamon. O risco de implosão é real. O actual PS não serve aos líderes de nenhuma das correntes. Valls queria “refundar” o partido numa base reformista e mudar o seu nome. A ala esquerda deixou de poder coexistir com os reformistas. Aquela será tentada a voltar-se para uma “unidade da esquerda” com o “revolucionário” Jean-Luc Mélenchon. A reformista tentará construir um novo centro-esquerda.

Entretanto, surgira um candidato que irá mudar os dados da equação: Emmanuel Macron. À clivagem esquerda/direita, ele opõe a clivagem progressistas/conservadores das duas tradicionais famílias ideológicas. Procura associar os valores de esquerda a um social-liberalismo. As vitórias de Hamon e de Fillon alargaram, à esquerda e à direita, o seu espaço de atracção política. Não tem partido, mas é óbvio que tem no horizonte uma nova formação política reformista. Muito depende do resultado que obtiver na primeira volta (ver P2 de amanhã).

“Socialismo de oposição” e “socialismo de governo” parecem seguir rectas divergentes: um divórcio. Se assim acontecer, o PS deixará de ocupar o lugar central na esquerda para ser uma espécie de vazio entre duas opções, a de Hamon/Mélanchon e a de Macron.

A fulminante ascensão de Macron passou para segundo plano as vicissitudes do PS e do LR. Por isso, ele e Marine Le Pen são os actores do momento. Mas ainda falta algum tempo até 23 de Abril.

O que se não deve esquecer é que estas eleições têm muito a ver com as mudanças no mundo. Volto a Philip Stephens. Todos os recentes grandes desafios políticos têm tido um final negativo. “E se fosse a França a desafiar esta narrativa?”     

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