Líderes europeus debatem o futuro na era Trump

Em La Valetta, numa cimeira informal, os líderes europeus vão debater o futuro. Trump tornou o debate muito mais urgente. E muito mais difícil.

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Os líderes europeus reúnem-se hoje informalmente em La Valetta (Malta) para preparar a cimeira de 25 de Março em Roma, que celebrará os 60 anos do tratado que fundou a Comunidade Europeia. Inicialmente, o objectivo era discutir os refugiados e o “Brexit”. Quando convocaram o encontro, talvez não antecipassem que teriam de fazer face a uma realidade estratégica completamente diferente e ainda totalmente imprevisível. O facto novo chama-se Donald Trump. A Europa não estava preparada para que um presidente americano pusesse radicalmente em causa a relação entre os dois lados do Atlântico, forjada na guerra e mantida até hoje. A única certeza é que, a partir de agora, citando a chanceler alemã, “a Europa tem o seu destino nas mãos”. Para o bem e para o mal. O que fará dele? A resposta pode começar hoje.

Ontem, a chanceler alemã mandou dizer que a relação entre a Alemanha e os EUA “não é apenas uma relação entre governos”. Nas palavras do seu porta-voz, Steffen Seibert: “É uma amizade profunda, diria mesmo histórica, entre dois povos e uma união entre duas democracias.” A chanceler já convidou Trump a visitá-la, nem que seja por ocasião da cimeira do G20 a que presidirá em Julho. Vai tentar evitar excessos retóricos durante o debate de La Valetta. É, provavelmente, a única líder europeia em condições de o fazer.

O Reino Unido está em processo de saída, com Theresa May a posicionar-se como a melhor amiga de Trump na Europa. A França é quase uma não existência. A Itália está um caos. Os países do Leste divergem dos princípios fundadores da integração. A crise do euro ainda está longe do fim. Trump vem baralhar ainda mais as contas. Com a mudança em Washington não há dimensão do projecto europeu que não esteja em causa, desde a relação com as outras grandes potências mundiais (Rússia e China) à prioridade ao comércio livre de que a Alemanha e a Europa são hoje grandes beneficiárias e que Trump já começou a desmantelar. Haverá inevitavelmente divisões. A Europa está, ela própria, mergulhada numa crise existencial profunda, que se traduz no “Brexit” (o primeiro grande abalo), mas também na ascensão imparável de partidos nacionalistas e populistas que põem abertamente em causa a integração e que vêem em Trump (como em Putin) um aliado.

Tudo em causa

Não haverá nenhuma região do mundo em que o impacte político e estratégico da eleição de Trump seja mais forte do que na Europa. Durante 70 anos, os EUA garantiram a sua segurança através da NATO. Durante 70 anos, a América funcionou como uma potência europeia, garantindo o sucesso da integração e impedindo que qualquer país voltasse a cair em tentação hegemónica. Não quer dizer que a relação transatlântica não tivesse atravessado crises sérias. Sempre foram superadas. Os valores comuns e os interesses muito próximos mantiveram a aliança para lá da Guerra Fria, durante a era da globalização e, mais recentemente, a ascensão de novos ou velhos pólos de poder a disputar a supremacia económica e política do Ocidente. Trump significa uma ruptura total com o passado que ninguém esperava — e no pior momento. Putin desafia a sua segurança a leste. O terrorismo fustiga-a internamente.

Mais uma vez, Merkel encontrou o tom certo para evitar precipitações. Reagiu imperturbável aos sucessivos ataques que lhe foram dirigidos pela nova Administração americana, que começaram com o Presidente a acusar a Alemanha de transformar a Europa “num veículo” do seu poder e acabaram nas críticas inéditas sobre o dumping monetário (ver págs. 4/5).

“A Alemanha está a usar um euro grosseiramente desvalorizado para ganhar vantagem sobre os EUA e os seus parceiros europeus”, disse Peter Navarro, o homem do Presidente americano para a política comercial. Pelo meio, Washington já disse que o euro não terá vida longa e que a NATO ou muda, ou arrisca-se a desaparecer. A palavra que o Presidente escolheu para qualificar a aliança atlântica — “obsoleta” — já foi escrita e dissecada mil vezes em todas as capitais europeias, que acabam de acordar para um pesadelo para o qual não estavam preparadas.

Telhados de vidro

Em La Valetta, os 28 líderes (May estará presente apenas da parte da manhã) vão tentar adoptar uma posição comum perante os refugiados que permita fazer a diferença com a nova política de Trump. Não será fácil. “A Europa não está em boa posição para dar opiniões sobre as escolhas dos outros. Ou será que vamos esquecer que também nós temos estado a construir muros na Europa?”, disse recentemente o chefe da diplomacia italiana, Angelino Alfano. E nem é preciso ir aos movimentos de extrema-direita. A política de Trump contra os refugiados foi elogiada por Horst Seehofer, o líder da CSU da Baviera, irmão da CDU de Angela Merkel. “Ele está a cumprir de forma consistente as suas promessas eleitorais, ponto por ponto. Na Alemanha, teríamos começado por criar um grupo de trabalho, depois um segundo grupo para as conclusões e um grupo para a sua execução.” O único lado positivo é que Trump é altamente impopular na Alemanha.

Na segunda-feira, o site do Politico Europa escrevia que os políticos holandeses “deixaram de se importar com a linguagem”. A observação ia direita ao primeiro-ministro liberal, Mark Rutt, que enfrenta eleições em Março e que resolveu adoptar uma linguagem semelhante à de Geert Wilders, o líder do partido xenófobo holandês que vai à frente em todas as sondagens. Num artigo que publicou na imprensa, Rutt escreve: “Percebo que as pessoas pensem: ‘Se eles rejeitam o nosso país, preferimos que se vão embora.’ Tenho o mesmo sentimento. Ajam normalmente ou vão-se embora.” Numa entrevista recente, disse que os jovens de origem turca com comportamentos anti-sociais deviam “pôr-se a andar”. Puro Wilders. Há quem entenda que esta estratégia não sairá vitoriosa.
A questão da NATO é ainda mais complexa. Não é só o custo da defesa europeia. Desde o fim da Guerra Fria que todos os presidentes americanos insistem em que a Europa tem de “partilhar” de forma mais equilibrada o fardo da sua defesa. Os europeus ligaram pouco ao aviso, entretidos a salvar o euro e a cumprir o Pacto de Estabilidade. Só em 2015 os orçamentos de defesa pararam de cair, para iniciar um lento crescimento, ainda muito longe dos 2% fixados há dez anos pela organização. As excepções são raras: Reino Unido (de saída), França, Grécia e pouco mais.

Agora, os líderes europeus vão ter de colocar a questão da defesa europeia como uma prioridade. “A Europa vai finalmente tratar a sério da sua defesa”, escreviam Mark Leonard e Jeremy Shapiro do European Council on Foreign Relations (ECFR), num texto recente sobre as dez grandes tendências da Europa para 2017. As decisões neste domínio farão parte da Declaração de Roma, dando-lhe alguma substância.

Está previsto anunciar em Março que 12 a 15 países vão lançar uma “cooperação estrutural permanente” para a defesa comum, como está previsto no Tratado de Lisboa. As previsões do ECFR falam também “do regresso triunfal da Rússia”, que poderá voltar ao G7 (de onde foi suspensa depois da crise ucraniana) já num encontro em Março, previsto para a Sicília. Trump dará uma ajuda. Merkel terá mais dificuldade em manter a Europa unida em torno das sanções a Moscovo. Falar de Trump, em La Valetta, é também falar de Putin.

Ontem, o Presidente russo visitou Budapeste, a capital europeia onde é recebido como um amigo por Viktor Órban, para se fazer ouvir em La Valetta. Órban saudou a eleição do Presidente americano como o fim do “multilateralismo”. Putin precisa dele para forçar a questão das sanções na agenda europeia. O problema não é imediato. A Europa só em Julho vai rever as sanções e até lá não espera que Washington tome uma decisão unilateral. Desta vez, no entanto, a Europa está perante si própria sem subterfúgios nem desculpas para adiar o futuro.

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