“A música ou se faz com paixão, ou de forma fria. Prefiro a primeira”

Né Ladeiras rompe um silêncio de 15 anos com novo disco a que chamou Outras Vidas, parceria com Tiago Torres da Silva e Amadeu Magalhães. Uma dupla celebração: vai apresentá-lo esta quinta-feira no Centro Cultural de Belém.

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Né Ladeiras: "Quando não temos nada para dizer, o melhor é o silêncio e a reclusão" ADOLFO USIER

Num mesmo ano, depois de surgir no disco Lisboa Íntima, da flautista norte-americana Susan Palma-Nidel, Né Ladeiras aparece agora com um novo disco a solo, o primeiro em 15 anos. Não esteve parada, nem reclusa, nem doente. Mas quis afastar-se da música. "Mais do que um vazio, criou-se um estado de pânico", diz Né Ladeiras ao PÚBLICO. "Quando ficamos sem palavras, sem reacções, quando simplesmente queremos respirar e pouco mais, para quê fazer coisas de que nos vamos arrepender mais tarde? Quando não temos nada para dizer, o melhor é o silêncio e a reclusão. Para pensar naquilo que vamos dizer a seguir. Ou para descansar, simplesmente." Foi o que ela fez quando se instalou em Torres Novas: "Estive a viver numa sociedade pequena, a fazer um trabalho diferente do que fazia, mas não tão diferente porque estava ligada ao património cultural e imaterial, a trabalhar num museu."

Curiosamente, recomeçou a compor lá. "Já estava há muitos anos sem pegar na guitarra. Em conversa com o Tiago [Torres da Silva], que insistia para que eu compusesse, disse-lhe um dia que achava que já tinha qualquer coisa para dizer. E contei-lhe a história de ter ido à estação arqueológica de Torres Novas, à Villa Cardilium, e ter lido num mosaico romano a frase ‘Cardilium e Avita vivem felizes na torre’. O que queria dizer aquilo? Que em qualquer chão podemos ser felizes? Tudo isso começou a andar à roda de mim. Aquilo tinha acontecido no século IV depois de Cristo e eu comecei a pensar nos meus próprios trajectos. Dentro de uma vida fazem-se muitas vidas. Caminhos que escolhemos, às vezes de forma errada, às vezes certeiramente, mas que vêm a revelar aquilo que nós somos." Desse sinal de Avita veio, então, a inspiração. E a troca de mensagens com Tiago, de onde foram nascendo as canções. Uma é a Canção de Avita, de onde emanam tonalidades orientais. "Eu tenho uma paixão pelos cantares do mundo, de uma forma geral. Mas há aqueles com que eu me identifico mais: toda a zona do Médio Oriente, as canções tradicionais hebraicas, do Iémen, da Arménia. Tenho muitos CD e faço ligação com algumas formas de cantar de Portugal. Na Beira Baixa, e mesmo em Trás-os-Montes, há melodias que são de inspiração judaica e árabe. E há uma carga genética em mim, no meu próprio sangue."

O caminho das pedras

Além de Avita, outros nomes de mulheres marcam este disco: Greta Garbo (a quem Né Ladeiras dedicara um disco em 1988, Corsária), Frida Kahlo, Madre Teresa de Calcutá, Isabelle Eberhardt, Violeta Parra. "Nos meus momentos de reclusão, eu lidava muito com elas, lia sobre elas, via documentários e filmes e elas instalaram-se na minha vida. Porquê esta identificação? Porque em determinada altura eu sinto que aquele pedacinho de vida ou atitude também poderia ter sido eu a tê-la. São mulheres que estão na vida de uma forma tão honesta e tão emotiva que parece que mais nada as guia senão o próprio coração. E a música, ou se faz com paixão, coração, ternura, amor, ou se faz de uma forma muito fria, fingindo aquilo que não se é e ganhando muito com isso. Eu prefiro sempre a primeira hipótese."

No disco, as letras são de Tiago Torres da Silva e os arranjos, a produção e a maior parte dos instrumentos tocados são de Amadeu Magalhães. A música, essa, é toda da autoria de Né Ladeiras à excepção de Noites de Assuão, por ela adaptada de uma música tradicional arménia. Nos versos, autobiográficos, lê-se: "Tenho vontade de chorar e no entanto sei que jamais fui assim tão feliz". "A primeira vez que o Tiago me mostrou a letra, fiquei muito aflita. E disse-lhe que não sabia como lidar com aquilo, porque é difícil falar de nós." Mas ele também lhe confessou que se emocionara a escrever algumas daquelas frases. "Acho que ele sentiu o caminho das pedras, irregular e difícil, que muitas vezes me é atribuído sem haver conhecimento do que realmente ele foi para mim. Vou ser completamente sincera: estes meus ‘desaparecimentos’ são associados, por pessoas que não me conhecem, a instabilidades minhas aliadas a certo tipo de coisas que não pratico, não uso nem nunca usei. Ao escrever essa canção, ele apercebeu-se de que eu tenho sido muito incompreendida pelas pessoas. E eu expliquei-lhe que, ao cantá-la, me iria despir completamente e não sabia se estava preparada para isso. E foi o tema mais difícil de cantar em estúdio, teve de ser interrompido muitas vezes porque senti um bocado a queimadura na pele. Mas também foi bom, porque foi muito terapêutico."

Garbo, Fausto, Zeca

No palco do Centro Cultural de Belém (onde estará com Amadeu Magalhães, Ricardo Mingatos e Diogo Passos), Né Ladeiras apresentará esta quinta-feira (21h) na íntegra o novo disco, Outras Vidas, mas também outras canções do seu repertório. "Dei preferência a temas que gravei com letras do Tiago mas também fui buscar coisas ‘aos céus’: o Jag Vill Vara Ensam, da Corsária; e duas referências principais da música portuguesa, Fausto e Zeca Afonso. Fui buscar o Benditos, do Zeca Afonso, que não cantei bem como devia na altura da gravação do Galinhas do Mato [1985], e quero agora fazer justiça a esse tema; e uma canção do Fausto, Todo este céu, que foge muito do Fausto que conhecemos e é um tema belíssimo. E fui buscar também à Violeta Parra o Gracias a la vida. Tinha de ser. Acho que já posso cantá-la em público: olhar para trás e agradecer."

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