Merkel vai à Turquia defender o seu plano controverso de deportação de refugiados

A chanceler alemã quer provar que a Turquia é suficientemente segura para receber os milhares de pessoas que a Europa se prepara para deportar. Terá de ignorar relatos de graves violações dos direitos humanos em nome de uma estratégia imperfeita.

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Um refugiado sírio pede esmola na cidade turca de Suruç, perto da fronteira com a Síria. BULENT KILIC/AFP

Dilo Dervis suicidou-se aos vinte anos num centro de repatriamento para refugiados na Turquia. Morreu uma semana depois de um batalhão das forças especiais invadir as instalações onde estava detido há cerca de dois meses. Dervis e outros requerentes de asilo protestavam contra as condições de vida no centro de Askale, que há muito ganhara fama de ser mais um espaço de tortura e castigo do que um local intermédio onde pessoas ameaçadas com a expulsão do país esperam o fim dos seus processos.

Dervis deveria ter sido libertado a meados de Dezembro, mas estava ainda detido a 28, no dia em que dezenas de reclusos de Askale incendiaram colchões em protesto contra as sucessivas agressões e pedidos de asilo recusados sem fundamento. Exigiram ver a família e os advogados, mas acabaram espancados pela polícia turca. Muitos foram hospitalizados ou acorrentados em isolamento. Os pais de Dervis não acreditam na notícia do seu suicídio. São sírios curdos, como ele, e, por isso, desconfiados do que lhes diz o Governo turco. Para eles, Dervis foi assassinado.

A chanceler alemã Angela Merkel e uma delegação de pesos-pesados europeus visitam este sábado a cidade de Gaziantep, quatro meses depois da morte de Dervis. Não se conhece muito sobre a viagem, para além de que visitam a Turquia para fazer o “acompanhamento” do acordo selado em Março com a União Europeia para a devolução de pessoas chegadas à Grécia. Esta é a grande estratégia da chanceler para abater a crise de refugiados na Europa. Nenhum líder estava mais pressionado para encontrar uma solução e ninguém mais do que ela se mobilizou para firmar o acordo.

Mais do que fazer o “acompanhamento” do acordo, que ainda mal foi posto em prática, Merkel e a sua delegação estarão na Turquia para o defender e dizer que o país é suficientemente seguro para os milhares de pessoas que a UE se prepara para deportar para lá, contra os desejos de organizações humanitárias e ignorando os alertas das Nações Unidas e Conselho Europeu. Gaziantep é uma escolha segura para o fazerem: está suficientemente próxima da fronteira com a Síria para que sejam visíveis a marcas do êxodo provocado pela guerra, mas longe que baste de muitos dos lugares inseguros na Turquia onde essas pessoas em fuga agora vivem, ou de outros que trazem à memória o alarmante registo humanitário do país.

Se Merkel viajasse umas dezenas de quilómetros para Sul, para Kilis, como chegou a ser anunciado, avistaria parte de um grande muro de betão e arame farpado que envergonharia as vedações húngaras ou macedónias. Este é para muitos sírios o ponto de entrada na Turquia, principalmente desde que a guerra em Alepo se tornou mais violenta. De Kilis e de outras zonas de fronteira há dezenas de relatos de abusos e bloqueios às mãos de soldados turcos, que até muito recentemente eram fotografados ajudando famílias a transportarem os seus haveres para a Turquia.

A Human Rights Watch revelou esta semana que centenas de refugiados sírios foram impedidos de entrar na Turquia depois de os seus campos junto à fronteira terem sido atingidos por artilharia do regime de Bashar al-Assad. O jornal britânico The Times revelou na terça-feira ter recebido um vídeo gravado não muito longe destes campos, em que oito sírios, a maioria mulheres e crianças, são abatidos a tiro por soldados turcos quando tentavam cruzar a fronteira. Estes relatos não são casos isolados: há uma série de indícios de que as autoridades turcas expulsam discretamente sírios do seu território e impedem violentamente que outros consigam entrar.

Um acordo à prova

As reservas humanitárias sobre a Turquia vão para além dos seus centros de repatriamento violentos ou de expulsões disfarçadas. O próprio sistema de asilo é discriminatório. Ao contrário da União Europeia, a Turquia só respeita a convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados quando estão em causa cidadãos europeus. Os mais de três milhões de sírios só foram reconhecidos legalmente em 2013 como “convidados” e não têm ainda hoje acesso aos direitos que seriam concedidos a um exilado na Europa, como um visto de trabalho normal, o que empurra a maioria dos refugiados para a pobreza e milhares de crianças para trabalho forçado de menores. Os cidadãos de outras nacionalidades vivem sob a ameaça constante de deportação. E, no contexto do acordo de Março, isso é um dado fundamental.

O acordo foi desenhado para devolver à Turquia o maior número possível de pessoas chegadas irregularmente à Grécia depois do dia 28 de Março. Bruxelas quer com isto dissuadir novas viagens pelo Mediterrâneo, ao mesmo tempo que tenta desconstruir redes de tráfico humano. Para já, parece estar a resultar, como vêm sublinhando Merkel e outros líderes europeus. Há já uma queda drástica no número de chegadas: nos primeiros 17 dias de Abril contaram-se apenas 2257 pessoas — como termo de comparação, em Janeiro e Fevereiro, entraram na Grécia de barco 65 mil e 55 mil pessoas, respectivamente.

Mas o verdadeiro teste está ainda por vir. Só 325 pessoas foram para já reenviadas para a Turquia desde que o acordo foi assinado e em operações cosméticas que parecem ter servido apenas para cumprir a agenda do início das deportações. As devoluções pararam para serem afinados alguns aspectos práticos, mas também porque houve uma vaga de pedidos de asilo das mais de seis mil pessoas detidas em centros gregos por terem chegado ao país depois da data-limite para as primeiras deportações.

Cada caso é avaliado individualmente, mas o acordo com a Turquia faz duas grandes mudanças a isto. As autoridades gregas e europeias têm agora apenas 14 dias para decidirem se cada requerente de asilo tem direito de protecção na Grécia e, mais determinantemente, a Turquia passa a poder ser designada como “terceiro país seguro”, o que em si é razão suficiente para aprovar a deportação de alguém. Para que isto aconteça, deve ser considerado que essa pessoa terá o direito de pedir protecção na Turquia e não será automaticamente deportada logo que desembarque lá — o princípio de “não repulsão”.

A União Europeia decidiu que a Turquia é suficientemente segura para sírios, uma vez que têm estatuto de “convidado” e algum acesso a direitos básicos. Mas isso dificilmente se aplicará aos afegãos — mais de 20% das chegadas — ou iraquianos — quase 15% —, que em muitos casos conseguiriam asilo na Europa. Para estas pessoas, ser deportado para a Turquia significa acabar num centro de repatriamento como o de Askale, onde morreu Dilo Dervis.

Na prática, porém, dar asilo a todas as pessoas vulneráveis na Grécia não dissuadiria novas travessias pelo Mediterrâneo e aumentaria ainda mais a pressão sobre o país, onde já mais de 50 mil pessoas vivem num limbo. Não estão detidas, mas impedidas de avançar para o Norte da Europa desde que os países nos Balcãs encerraram as suas fronteiras. Milhares vivem em condições dramáticas em Idomeni, na fronteira com a Macedónia.

Equilibrismo democrático

O primeiro grande teste ao acordo com a Turquia acontecerá esta semana, para quando se esperam as primeiras decisões dos pedidos de asilo submetidos pelas pessoas nos centros de detenção. Como explica ao PÚBLICO Angeliki Dimitriadi, especialista em lei de asilo no European Council on Foreign Relations, “se a Grécia começar a rejeitar pedidos de asilo [com base na Turquia ser um país seguro], estamos diante um grave problema. Para além do que vem no papel, a Turquia não é de todo um país seguro e tem um péssimo registo na maneira como trata refugiados e migrantes. Neste cenário, estaremos a devolver os mais vulneráveis e mais necessitados a um país que instrumentalizou a migração e usa refugiados como arma de arremesso na sua política externa".

A Turquia já acolhe mais de três milhões de refugiados sírios e não quer ser vista como o armazém europeu de asilados. Em troca, exige um lugar no palco da diplomacia europeia, depois de uma década em que foi gradualmente perdendo relevância cada vez que resvalava para a autocracia e autoritarismo. Para além dos seis mil milhões de euros para financiar custos do acolhimento de refugiados, Bruxelas comprometeu-se a abrir novos capítulos no processo de adesão da Turquia à União Europeia a abriu um roteiro para liberalizar as viagens na Europa.

O grande objectivo de Ancara é conseguir a isenção de vistos para o espaço europeu, algo há muito reivindicado pelos turcos e que o Governo usou para “vender” o acordo de devolução de refugiados com a Europa. Mas para o conseguir, a Turquia tem de cumprir primeiro uma lista de 72 obrigações, a mesma que está para completar há mais de uma década e de que apenas conseguiu cumprir metade das cláusulas — algumas especialmente problemáticas, como normas de igualdade para minorias étnicas, num período de grande crispação com a população curda.

Mas, na linha do que disse esta semana o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan — “a UE precisa mais da Turquia do que a Turquia precisa da UE” —, o país parece estar pouco disposto a cumprir escrupulosamente o roteiro desenhado por Bruxelas e ameaçou romper com os compromissos do acordo de devolução de refugiados caso não obtenha viagens mais fáceis para a Europa até Junho. Ou, nas palavras de Robert Fisk no Independent: “A cortesia de um visto fácil para qualquer pessoa desde Izmir a Iskanderia interessada em dar uma vista de olhos à mesma União Europeia que os refugiados arriscaram a vida para ver.”

Também neste caso será Angela Merkel quem estará na linha da frente. A chanceler permitiu esta semana a abertura de um processo judicial contra um humorista alemão que fez pouco de Erdogan. Merkel sofreu imediatamente a ira dos eleitores, que a criticaram por querer agradar a um líder autoritário para salvar a sua estratégia de contenção de refugiados. A visita de Merkel coincide com o aniversário da fundação do Parlamento turco e aproxima-se das datas do genocídio arménio. Tudo razões para discutir direitos humanos e esclarecer até que ponto os líderes europeus estão dispostos a ir para se protegerem do fluxo que abalou as fundações europeias no último ano. Questionado pelo Guardian sobre se a chanceler falaria destes assuntos em Gaziantep, o gabinete de Merkel limitou-se a responder: “Estaremos dedicados à nossa ideia do que são valores fundamentais.”

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