Supremo do México pode levantar proibição ao consumo de marijuana

Juízes votam um projecto de deliberação que sustenta a despenalização do consumo recreativo de marijuana e tudo o que lhe está associado: sementeira, cultivo, colheita, preparação e transporte. A venda continuará a ser proibida.

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Jovens activistas manifestaram-se em frente ao Supremo a favor da legalização do cannabis AFP/Yuri Cortez

O Supremo Tribunal de Justiça do México pronuncia-se esta quarta-feira sobre a constitucionalidade da legislação que proíbe o cultivo e o consumo recreativo de marijuana, e a sua deliberação abre a porta à legalização do uso daquela droga que, segundo estimativas, representa 80% do consumo de substâncias ilícitas no país.

O processo resulta de um recurso interposto pela Sociedade Mexicana de Autoconsumo Responsável e Tolerante (SMART) junto da Supremo Tribunal de Justiça, depois de a entidade reguladora da saúde ter inviabilizado uma licença para a abertura de um clube privado dedicado ao uso pessoal e regular de marijuana com fins lúdicos, na Cidade do México.

Ouvidos os argumentos, o colectivo vai votar um projecto de deliberação redigido por um dos seus juízes, Arturo Zaldívar, que sustenta a despenalização do cultivo e transporte de marijuana para o consumo com fins lúdicos ou recreativos. Na sua opinião, a proibição do consumo recreativo é "contrário ao livre desenvolvimento da personalidade" e atenta contra o direito à auto-determinação tal como está consagrado na Constituição.

Se esse também for o entendimento do tribunal, a SMART será autorizada a abrir o seu clube. Mas essa autorização pressupõe a declaração da inconstitucionalidade de cinco artigos da Lei Geral da Saúde que, segundo o juiz Arturo Zaldívar, "afectam direitos fundamentais, sem explorar alternativas menos extremas para regular o consumo e assim prevenir os vícios à lei". Ou seja, o Supremo poderá eliminar os obstáculos jurídicos ao licenciamento de outros clubes de usuários – e assim forçar o Congresso Nacional a legislar sobre o cannabis.

Apesar de o México já ter despenalizado a posse de uma quantidade mínima de marijuana para uso pessoal em 2009, a decisão do Supremo Tribunal terá implicações mais profundas se for no sentido da liberalização de "todas as actividades relacionadas com o consumo" e que incluem a sementeira, cultivo, colheita, preparação e transporte (a venda ao público continua proibida). A produção e distribuição de marijuana é uma componente substantiva do negócio dos cartéis do narcotráfico, que dali retiram cerca de 40% do seu lucro. Assim, o cultivo próprio não só representa uma disrupção nas receitas dos gangues criminosos, como contribui para reduzir a exposição à violência associada à sua actividade.

No debate público, as opiniões estão divididas. Aqueles que apoiam o projecto de legalização da marijuana fazem-no com base na defesa da liberdade individual, das garantias de segurança dos consumidores, da redução de danos em termos de saúde pública e ainda em nome do enfraquecimento do poder do narcotráfico e da corrupção das autoridades. Segundo eles, não só não existe uma única morte confirmada por uso excessivo de marijuana, como os estudos demonstram que os problemas de dependência entre os consumidores são despiciendos. Além disso, notam, estes indivíduos não exibem comportamentos violentos, pelo que deveriam deixar de ser perseguidos pela polícia – que poderia assim dedicar-se a investigações de crimes graves como extorsão, violação, raptos ou homicídios – e encarcerados em prisões que funcionam como escolas de crime e centros de recrutamento para os grupos do narcotráfico.

Em entrevista ao El País, um dos dirigentes da organização não-governamental México Unido contra a Delinquência, Armando Santacruz, coloca a questão no plano dos direitos constitucionais, sublinhando que a lei fundamental "garante a todos os mexicanos o direito de prosseguir o seu projecto de vida desde que não prejudique terceiros". A este, junta outros argumentos, alguns jurídicos, como por exemplo o da proporcionalidade da lei – "é desproporcional que quem fuma marijuana possa ser preso, e quem abuse do álcool não" – e outros da responsabilidade do Estado, que na sua opinião "abdicou em favor do crime organizado do controlo de uma substância que reputa de perigosa".

No outro lado da barreira, os defensores da proibição contrapõem com o previsível aumento do consumo de drogas resultante da facilidade do acesso. Um estudo encomendado pelo Congresso em 2014 concluiu que 70% dos mexicanos estavam contra a legalização das drogas leves. "Não queremos ter uma sociedade viciada em marijuana", sublinhou o médico que é responsável pelo comissariado federal que lida com as dependências, Manuel Mondragón. Para a arquidiocese da Cidade do México, o projecto do Supremo representa uma "capitulação" à preponderância do individualismo: "A marijuana é apenas um placebo para acalmar as enfermidades e a destruição social a que assistimos impotentes." Quanto ao impacto da mudança da lei sobre os cartéis da droga, argumentam que estes deverão responder com a reorientação do seu negócio para o ópio ou heroína, com efeitos ainda mais devastadores na sociedade.

O debate no México acontece num momento em que, a nível regional, a pressão para a revisão da legislação e das políticas de drogas se sente mais intensamente do que nunca. No Canadá, o novo primeiro-ministro, Justin Trudeau, já confirmou a sua intenção de rever a lei no sentido de legalizar a marijuana. Nos Estados Unidos, apesar da oposição, pelo menos quatro estados, além do distrito federal, já aprovaram legislação para o consumo recreativo de marijuana por maiores de idade (e em 20 estados é legal o uso medicinal há vários anos).

Em Agosto, um tribunal mexicano deliberou, pela primeira vez, sobre o recurso ao cannabis para fins medicinais ou terapêuticos, ao autorizar a família de uma criança de oito anos com síndroma de Lennox-Gaustaut, um tipo de epilepsia especialmente debilitante, a recorrer a marijuana ou produtos medicinais derivados do cannabis no tratamento da doença.

Muitos líderes latino-americanos têm recorrido à Organização dos Estados Americanos para promover a sua "mudança de paradigma" no que toca às políticas de drogas, e particularmente a revisão do proibicionismo do consumo de drogas leves e das estratégias de combate ao tráfico internacional.

Apesar de ter defendido o reenquadramento da guerra ao narcotráfico herdada do seu antecessor, Felipe Calderón, depois de mais de 80 mil mortos e cerca de 20 mil desaparecidos, o Governo do Presidente Enrique Peña Nieto está frontalmente contra a legalização do consumo de marijuana.

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