Jogar com os recortes da vida

O primeiro de cinco episódios que compõem Life is Strange não desilude e consegue captar a curiosidade de quem joga, especialmente com um final que deixa tudo em aberto.

Trailer de Life Is Strange

O melhor que conseguimos fazer: esta aprendizagem da ruína de algumas decisões na esperança que o seu aflorar seja o mais sereno. O que está feito está feito, repete-se na involuntária elevação do conselho a máxima. E aprendemos tentando pelo menos aprender. Uma e outra vez, as necessárias para não transladarmos o arrependimento.

Alcantilado, o desígnio da vida real é sabotado em Chrysalis, o primeiro de cinco episódios que compõem Life is Strange. Max Caulfield, a sua protagonista, tem um dom descoberto num incontornável incidente na alvorada da narrativa: o jogador pode rebobinar o tempo à sua volta, passando um apagador pela decisão do momento se a achar errónea, recomeçando mas mantendo os seus objectos e o conhecimento sobre a situação.

O início do episódio é uma miríade de vários inícios para Max: não só foi protagonista de tal acontecimento que certamente lhe mudará o resto da vida, como acabou de fazer 18 anos e mudou-se de Seattle para Oregon, onde frequenta a escola Blackwell Academy com a desconfiança e incerteza de quem virou uma página.

Acentuadamente orgulhosa da sua equipa de natação, Blackwell é uma escola onde os adolescentes são adolescentes. Max percorre os seus corredores enquanto To all of you, de Syd Matters, ecoa nos seus auscultadores. Cartazes alusivos ao Halloween e à equipa local multiplicam-se pelas paredes, estantes com troféus, alguém namorisca com alguém, dando-lhe a mão, tocando-lhe levemente no ombro.

A primeira parte do episódio é um tour de force da sua peculiar capacidade, com a produtora gaulesa Dontnod, até aqui conhecida pelo seu trabalho em Remember Me, a incentivar o jogador a explorar a característica principal de Life is Strange. Logo no início, na sala de aula, podemos tirar uma selfie, viver o acontecimento traumático que despoleta o dom, rebobinar o tempo, tirar o mesmo retrato e ver se a reacção do professor se mantém. Foi a forma encontrada para que Max se consciencialize do seu poder e para que o jogador se comece a ambientar à realidade do instantâneo vergar da linha temporal.

Mais situações se seguirão: mentir, testemunhar a reacção do interlocutor, rebobinar e dizer a verdade caso não fiquem satisfeitos com o ramificar da história. Pedir a uma estudante para pilotar o seu drone perguntando se é um arma de guerra, receber um esclarecedor não como paga da sua alegada ignorância, puxar o tempo atrás, vasculhar a mochila recolhendo informação detalhada sobre o modelo, reproduzir verbalmente esse detalhe fazendo-se passar por entendida e conquistando a confiança para o poder experimentar.

Mesmo que tenha aproximadamente duas horas e meia de duração, o procedimento escolhido pela produtora fica impregnado no consciente do jogador. Quando é necessário que um grupo de estudantes se mova do caminho, a nossa solução do puzzle social passa automaticamente por pensar em controlar o decorrer do tempo a nosso proveito. Tal como posteriormente vemos uma adolescente investida na leitura de um livro ser alvo humano de uma bola de futebol americano e, qual heroína do povo, engendramos uma maneira de a avisar premonitoriamente.

Rebobinar o tempo
O procedimento ao serviço da jogabilidade é extremamente simples: basta o pressionar de um botão para a manipulação acontecer onde a produtora o permite, outro botão acelera o processo e, engenhosamente, na espiral que ilustra graficamente o recuar no tempo um ponto marca a última decisão importante, ou seja, podemos recuar até onde sabemos que vamos fazer a diferença.

Contudo, a verdade é que além dos primeiros e dos derradeiros instantes, esta mecânica é usada sobretudo para trivialidades, nunca chegando à importância dos momentos que realmente importam. Rebobinar o tempo para responder assertivamente a uma pergunta e justificar o nosso conhecimento sobre manobras de skate ou imprimir um e-mail como prova irrefutável num caso sobre sexting nunca terá o mesmo encaixe emocional de salvar uma vida.

Na segunda parte ficamos a conhecer melhor as personagens, momento idílico para a escrita lhe dar dimensão e acentuar as suas personalidades. Max contracena não apenas mas também com Chloe, uma adolescente de cabelo azul, gorro e pulseiras, tatuada para possivelmente colocar a sua rebeldia em montra, tal como fumar deitada na cama a deverá atestar aos olhos do jogador. Rachel Amber, a sua amiga, o “anjo depois da morte do seu pai”, desapareceu, daí ter espalhado cartazes à procura de pistas pela escola.


Max e Chloe, as protagonistas principais do jogo

É fácil perceber que Max e Chloe têm um passado conjunto e certamente terão um futuro partilhado com o jogador nos restantes episódios. Chloe tem uma ligação inequívoca ao poder de Max e o seu padrasto ligações a vários acontecimentos questionáveis na escola, ou seja, o mecanismo usado pelo argumentista enquanto urdia a teia narrativa do primeiro episódio é transparente, deixando soltas as pontas suficientes para que o jogador, a mando da sua curiosidade, fique investido na série à espera da próxima toma.

O diálogo entre personagens é rombo. É compreensível o ajustar do tom ao quotidiano dos adolescentes americanos, porém, parece que estas linhas de texto foram baseadas num aleatório cardápio contemporâneo que inclui idiossincrasias como “whatever”, “chills” e “for reals”, o que ganha um contraste peculiar se tivermos em consideração que Max é uma estudante de fotografia, ou seja, essas expressões cliché chocam com menções a Louis Daguerre, Mark Jefferson e Diane Arbus, vultos consagrados da fotografia graças aos processos que desenvolveram e cunharam.

Fica também a sensação que a Dontnod quis colocar Life is Strange do lado dos jogadores, transparecendo a ideia que viu os mesmos filmes que eles, que experienciou a mesma cultura popular que eles, o que se traduz na inclusão de expressões como “REDRUM”, facilmente reconhecível por quem já viu The Shining. Tal como a evocação de Walter White, personagem principal de Breaking Bad, “TWN PKS” — possível alusão a Twin Peaks — numa matrícula, e uma menção a Final Fantasy: Spirits Within, filme de animação baseado na série de Role Playing Games da Square que dividiu e continua a dividir opiniões.

Mais sólida foi a escolha musical para a sua banda sonora. Além do já mencionado Syd Matters, está também presente Piano fire, dos Sparklehouse, Santa Monica dream, de Angus & Julia Stone, e Crosses, de José Gonzaléz — temas que encaixam melhor nos momentos que ajudam a destacar do que quando escutadas isoladamente no Spotify, por exemplo. O capítulo gráfico também merece ser mencionado, com a versão PlayStation 4 a mostrar texturas sólidas que são facilmente transformadas num ambiente que emulsiona a narrativa. Tal como é o sistema de iluminação e as partículas que pairam no ar em várias cenas e tentam ilustrar o real na ficção.

Como nas investidas da Telltale Games, ao longo de cada capítulo vamos sendo confrontados com escolhas que contarão para o desenrolar da narrativa. Terminado o capítulo, é possível rever o que decidimos e que percentagem de jogadores fez cada escolha. Não é um gancho inovador, mas é um método que angaria o interesse do jogador.

A estreia de Life is Strange não desilude e consegue captar a curiosidade de quem joga, especialmente com um final que deixa tudo em aberto. Todavia, juntamente com as dúvidas narrativas deixadas no ar, fica também a derradeira questão: será que a Dontnod conseguirá capitalizar a premissa? A resposta começará a ser dada em Março com a chegada do segundo episódio da série, Out of Time. Durante o interstício, o jogador inventivo já terá começado a imaginar o Inverno das personagens quando a sua Primavera ainda está por chegar.

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