Newman e Woodward no cartaz de Cannes: turbilhão de amor e cinema

Homenagem a um actor mas também a um grande e lírico cineasta e à sua actriz, o cartaz da 66ª edição de Cannes é a imagem, segundo a organização, do turbilhão sem fim que é o amor e o cinema.

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A foto da rodagem de A New Kind of Love foi trabalhada graficamente, integrada num décor que sugere o movimento : a imagem luminosa e terna, segundo a organização, do casal moderno e do turbilhão do amor.
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“Rachel, Rachel” (1968) - retrato amoroso, que mergulha no mundo interior, desejos e frustrações de uma professora de província. Globos de Ouro para Joanne Woodward, actriz, e Paul Newman, realizador; nomeações aos Óscares para a actriz principal (Woodward) e secundária (Estelle Parsons) e para o filme. Um triunfo como não voltaria a acontecer na carreira do realizador
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"A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas" (1972) - Prémio em Cannes para Woodward, no papel de uma mãe a quem a vida transformou "na megera mais maltrapilha da cidade" (palavras da actriz). Decisivo no olhar do cineasta: a atenção sobre Woodward não eclipsa uma disponibilidade para criar um microcosmos afectuoso que integra as personagens e as suas monstruosidades
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"The Shafow Box" (1980) - Produzido para a TV, por uma das filhas do realizador, Susan Newman, a peça de Michael Cristofer fez o realizador aventurar-se pelos terrenos movediços da doença terminal. Personagens com cancro passam os seus últimos dias com os familiares numa clínica. A serenidade do olhar torna "The Shadow Box" experimental, uma alternativa aos maneirismos sentimentais do docudrama
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“Algemas de Cristal” (1987) - Foi o encontro com a memória icónica de Newman/actor: Tennessee Williams ("Gata em Telhado de Zinco Quente", "Corações na Penumbra"). Uma das maiores adaptações de sempre de Williams - hoje isso é evidente - foi recebida sem paixão na altura. Mas está à beira das lágrimas. Até porque o realizador disse à sua actriz, Joanne, que nem pensasse em chorar; ele cortaria a cena

O Festival de Cannes, que decorre de 15 a 26 de Maio, escolheu como cartaz para a sua 66ª edição um casal que, para a organização, é a encarnação perfeita do espírito do cinema : Joanne Woodward e Paul Newman. É uma fotografia da rodagem de A New Kind of Love, de Melville Shavelson (1963). É uma homenagem à memória de Newman, actor e realizador (morreu em 2008), e um aceno com afecto a Joanne Woodward, sua mulher e sua actriz.

A foto da rodagem de A New Kind of Love foi trabalhada graficamente e integrada num décor que sugere o movimento: a imagem luminosa e terna, segundo a organização, do casal moderno e do turbilhão do amor. Que assim "pede que se viva o cinema como um desejo sem fim". Cinema e vida, eis Paul e Joanne.

Em 1958, Cannes recebeu-os, tinham acabado de ser casar, programando em competição The Long Hot Summer, de Martin Ritt, primeiro filme que rodaram juntos. Cannes continuou a seguir a história que os dois fizeram em filmes dele que ela protagonizou, de O Efeito dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas (competição, 1973) a Algemas de Cristal (competição, 1987).

A carreira de Newman como realizador foi breve  - seis títulos. O Actor's Studio, o seu perfil de estrela e os olhos azuis levaram sempre a melhor em termos de reconhecimento público e crítico. Numa das excepções ao esquecimento da obra de Newman-cineasta, o crítico Miguel Marías (www.movingimagesource.us) defendeu, em The Intimate Gaze, que Newman como realizador é uma "espécie de elo inconsciente perdido" entre a geração "ferida" do classicismo americano, gente como Nicholas Ray, Kazan, Richard Brooks (para quem filmou, como actor, Gata em Telhado de Zinco Quente ou Corações na Penumbra), Mankiewicz, Preminger, Minnelli ou Robert Rossen, e as experiências mais abstractas de quem veio depois, como Cassavetes, Abel Ferrara ou Charles Burnett.

A questão da intimidade é crucial no realizador Newman, que se estreou com Rachel Rachel (1968). Paul quis experimentar de forma menos penosa, como disse, o cinema. Na biografia Paul e Joanne, de Joe Morella e Edward Z. Epstein,  é citado assim: "Sempre quis ser realizador porque sempre gostei daquilo que ultrapassa a simples interpretação: os ensaios, as pesquisas no terreno, a exploração de uma personagem, todo o lado intelectual da coisa. Gosto mais disso do que subir a um palco ou mostrar-me frente à câmara. Que para mim sempre foi mais penoso do que agradável. Suponho que não sou muito exibicionista."

Depois, e continuamos a falar de intimidade, Joanne Woodward: ele considerava-a a maior actriz americana. "Joanne abandonou completamente a sua carreira por mim, para ficar do meu lado, para que o nosso casamento funcionasse. Se ela fizesse teatro todas as noites [em Nova Iorque] enquanto eu estivesse na Costa Oeste [a filmar] não haveria casamento. Penso que isso me incomoda mais do que a ela, mas também a perturba. Às vezes, entro em casa e vejo esta mulher a deambular pelas salas a murmurar: 'O que é que faço para dar de comer a sete pessoas [Newman teve seis filhos, três da primeira mulher, Jackie Witte, três de Joanne Woodward], o que é que cozinho?'".

Com ela, para ela, fez Rachel, Rachel, A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas (1972), The Shadow Box (1978) e Algemas de Cristal (1980). A sua menor notoriedade como cineasta deixará para sempre a sensação de que ficou algo por cumprir num universo lírico, frágil, com uma disponibilidade imensa e intensa para as personagens que é de pôr ao lado dos grandes do cinema americano. Nunca saberemos da frustração do realizador, que nas suas entrevistas foi tão discreto quanto os seus filmes.

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